Monte Carlo: transcrever a íntegra dos grampos mobilizaria a PF no país todo e ‘demoraria anos’
Documento sigiloso da Polícia Federal confirma uma suspeita que vem inquietando parte dos membros da CPI do Cachoeira: os diálogos transcritos no inquérito da Operação Monte Carlo representam apenas uma ínfima parte das escutas telefônicas captadas durante a investigação.
Sob o número 011/2010, ofício da PF datado de 16 de março de 2011 anota: "Seria humanamente impossível transcrever todos os diálogos. Para transcrever integralmente essa investigação, precisaríamos de todo o Departamento de Polícia Federal do Brasil inteiro e mesmo assim demoraria anos."
Obtido pelo blog, o texto traz o selo de "segredo de Justiça". Foi endereçado à 1a Vara Judicial da Comarca de Valparaíso, cidade de Goiás onde a operação começou. Na peça, a Polícia Federal resume os achados que colecionara até aquela data.
Quem lê o documento percebe que os investigadores esquadrinharam a quadrilha de Carlinhos Cachoeira valendo-se exclusivamente dos grampos. A PF chegou mesmo a explicar o porquê de não ter recorrido a outros métodos.
Atribuiu-se "a pouca investigação in loco" ao fato de a "organização criminosa possuir quase toda a força policial [de Goiás] à sua disposição." As escutas revelaram que "qualquer veículo ou pessoa suspeita que circule pelas redondezas da pequena cidade de Valparaíso, é imediatamente investigada pelos policiais" cooptados pela quadrilha.
A título de exemplo, a PF menciona algo que ficou sabendo graças aos grampos: "Uma de nossas viaturas teve a placa anotada e imediatamente os policiais a serviço da organização criminosa se comunicam e atuam visando descobrir maiores detalhes."
Iniciada no final de 2010 e finalizada em 29 de fevereiro de 2012, quando foram presos Cachoeira e os integrantes de seu bando, a Monte Carlo captou 259.949 diálogos telefônicos. Desse total, estima-se que apenas cerca de 16.600 foram efetivamente reproduzidos no papel.
Esse documento de 16 de março de 2011 informa que a quadrilha de Cachoeira começara a ser monitorada pelo Guardião, sistema de escutas da PF, em 17 de novembro de 2010. Quer dizer: até o dia em que o texto foi escrito, colecionavam-se diálogos recolhidos em quatro meses de grampo.
Acondicionadas em sete DVDs, as conversas foram enviadas à Comarca de Valparaíso com uma observação: "Consigne-se que, como praxe processual adotada no Brasil, são transcritas (sob a forma de resumo ou fala literal) somente as conversas pertinentes à investigação."
A voz de Demóstenes Torres já soava nas escutas. Embora não estivesse sob monitoramento direto, o senador fora pilhado porque tricotava amiúde com Cachoeira. Algo que já ficara evidenciado desde 2008, ano inaugural da Vegas, a operação que antecedera a Monte Carlo e estacionara na Procuradoria-Geral da República em setembro de 2009.
A PF absteve-se de mencionar Demóstenes no texto sobre Valparaíso. Citando-o, forçaria o envio do processo, de novo, à Procuradoria-Geral, já que o senador dispõe de prerrogativa de foro e só pode ser investigado com autorização do STF.
Apenas um ano depois, em março de 2012, os autos da Monte Carlo foram remetidos ao procurador-geral Roberto Gurgel. Após efetuar as prisões e as batidas policiais de busca e apreensão de papéis e computadores, a PF informou a Gurgel que escutara de forma "fortuita" Demóstenes e os deputados que integram a bancada do Cachoeira.
Simultaneamente, intensificaram-se os vazamentos de diálogos telefônicos sigilosos. Premido pelas manchetes, Gurgel levou o caso, finalmente, ao Supremo. Na petição, juntou os grampos mais recentes a 22 diálogos que constavam das páginas da Vegas, a operação que, três anos antes, fora considerara insubsistente pela Procuradoria.
Ao explicar as origens da Monte Carlo, iniciada um ano e dois meses depois do sobrestamento da Vegas, o documento da PF informa que essa segunda operação nasceu de "diversas denúncias anônimas" e de uma requisição (130/2010) da 3a Promotoria de Justiça de Valparaíso, protocolada no Departamento de Polícia Federal sob o número 08280.032525/2010-05. Não há menção a nenhum pedido da Procuradoria da República.
Considerando-se a velocidade com que a PF perscrutou os movimentos da quadrilha, não é negligenciável a hipótese de que tenha se servido da matéria prima reunida na Vegas. Mapearam-se os pontos de jogatina ilegal de Valparaíso e da cidade de Águas Lindas, ambas assentadas na fronteira com Brasília.
"A partir da análise das centenas de diálogos transcritos, comprovamos que o verdadeiro chefe de toda organização criminosa é Carlinhos Cachoeira, que literalmente manda nos policiais civis e militares […] mediante paga de propinas regulares escreveu a PF no texto de março do ano passado. Foi por conta do envolvimento dos policiais goianos que a Polícia Federal foi acionada pela Promotoria de Vaparaíso.
Noutro trecho do documento, informa-se que máfia comandada por Cachoeira "possui características empresariais, com atividades permanentes, estrutura, atribuições e remuneração bem definidos, além de respeito a uma hierarquia interna."
Listaram-se nomes de pessoas, de casas de jogos e de empresas usadas na lavagem de dinheiro. Empilharam-se também os números das contas bancárias utilizadas pela quadrilha –duas dezenas em nome do próprio Cachoeira.
O contraventor operava uma espécie de franquia do jogo. Seus sócios lhe repassavam "entre 25% e 30%" de todo o faturamento. Quem fugisse à obrigação era banido do mercado.
A soldo da quadrilha, um servidor do Fórum de Valparaíso e um oficial da promotoria mantinham Cachoeira informado sobre "todos os passos de promotores e juízes." Além de policiais de escalões inferiores, o esquema remunerava oficiais da PM e pelo menos três delegados da polícia civil goiana.
A PF teve de decodificar as manhas vocabulares dos bandidos. No cachoeirês, a língua da quadrilha, 'copinha' e 'geladeira' eram máquinas de caça-níquel. A Polícia Federal era chamada de 'Fernando'. Acionados para executar os serviços do bando, os carros da polícia recebiam o apelido de "barcas". Cassinos e casas de bingo eram chamadas de "pizzaria" e "igreja".
Assinam o texto da PF três delegados federais: Gerson Luiz Muller, superintendente em exercício da Polícia Federal do DF; Matheus Mella Rodrigues, chefe do núcleo de Inteligência Policial; e Wesley Soares, chefe da Delegacia Regional de Combate ao Crime Organizado.
A tróica escreve no documento que aproveitou dos grampos o que havia neles de útil à "produção de provas". Será?, perguntam-se os céticos. Há na CPI do Cachoeira requerimentos que pedem o envio à comissão da integralidade dos grampos. Resta saber quem vai se animar a transferir para o papel todas as transcrições. Coisa que, mobilizando-se no pais inteiro, a PF diz que "demoraria anos."
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