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Josias de Souza

Ao julgar Renan, Demóstenes abriu voto secreto

Josias de Souza

10/07/2012 04h48

Uma decisão tomada pelo ministro Celso de Mello, do STF, inaugurou no Senado uma polêmica sobre a sessão de julgamento de Demóstenes Torres, marcada para esta quarta-feira (11). No despacho, o ministro negou um pedido do senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES), que queria tornar público o seu voto.

O advogado de Demóstenes, Antonio Carlos de Almeida 'Kakay' Castro, saboreou a decisão: "A Constituição é expressa nesse ponto. O voto é secreto. Agora, o ministro Celso de Mello evidencia ainda mais a questão ao reforçar que, para o Supremo, o voto é secreto. Portanto, não há dúvida."

O debate tem um quê de hipocrisia. Em 5 de dezembro de 2007, foi a voto no plenário do Senado um pedido de cassação do mandato de Renan Calheiros. Nesse dia, Demóstenes subiu à tribuna e fez questão de abrir o seu voto. Era o segundo julgamento de Renan. E Demóstenes despejou seu veredicto sobre o microfone:

"Vou votar da mesma forma que votei da outra vez, conscientemente. Votei da outra vez pela perda do mandato do senador Renan Calheiros. Desta vez, voto com a convicção de que as provas levantadas pelo senador Jefferson Péres [relator do processo] são robustas…"

Demóstenes não foi o único a proclamar o voto nesse julgamento de 2007. Inúmeros senadores –de Marco Maciel (DEM-PE) a Aloizio Mercadante (PT-SP)—informaram da tribuna que votariam a favor da guilhotina.

Na petição protocolada no STF, Ferraço não reivindicou senão o direito de imitar o Demóstenes de 2007 no julgamento do Demóstenes de 2012. Com uma diferença: pediu que o Supremo determinasse à Mesa diretora do Senado a criação de "procedimento formal e eletrônico" que lhe permitisse extrair o voto digitado no painel, divulgando-o "de forma inequívoca".

O ministro Celso de Mello reconheceu que a votação recoberta pelo "mistério" não é um bom remédio. Porém, anotou que o voto secreto está previsto na Constituição. E, enquanto o texto constitucional não for alterado, a norma tem de ser obedecida. Surgiu então, uma pergunta: afinal, o senador pode declarar o seu voto, como fez Demóstenes cinco anos atrás?

Ouça-se Kakay: "É claro que os parlamentares têm imunidade material no tocante à fala deles. Isso é inquestionável. Mas eu entendo que seria uma tentativa de burlar a Constituição se, no momento de votar, um senador abrir o seu voto."

Para que o mandato de Demóstenes seja passado na lâmina, são necessários 41 votos. O repórter perguntou ao advogado do senador: "Suponha que vários senadores discursem da tribuna a favor da cassação e que o mandato seja podado por margem estreira de um ou dois votos. Seria caso de anulação?

Kakay soou ambíguo: "A questão é interessante. Temos aí dois princípios constitucionais que devem ser ponderados. Um deles é a imunidade dos parlamentares quanto às opiniões. Outro é a inviolabilidade do voto."

O advogado prosseguiu: "Evidentemente, na fase de encaminhamento a votação, haverá quem defenda a cassação. Isso faz parte da tradição do parlamento. Em princípio, não há o que questionar. O que não pode é abrir o voto na hora de votar. Mas há aí uma dúvida razoável. A diferença é tênue. Numa votação com resultado no fio da navalha, com diferença de dois votos, há sempre a tentação de recorrer."

Relator do pedido de cassação de Demóstenes na Comissão de Justiça, o senador Pedro Taques classifica a polêmica nascida da decisão de Celso de Mello de "falso debate." Considera que o direito do senador de enunciar o seu voto da tribuna é inquestionável.

Afora a abertura do voto de Demóstenes no julgamento de Renan, Taques recorda um caso mais recente. "São secretas também as votações em casos de indicação de ministros para o STF. Quando o Senado aprovou o nome da ministra Rosa Weber, eu declarei da tribuna minha contrariedade. O Demóstenes fez o mesmo."

Para reforçar a tese de que a polêmica gira em torno do vazio, Taques invocou outro exemplo: "Nas eleições, o voto é secreto e a urna é inviolável. Mas nenhum eleitor está impedido de declarar sua preferência. Se Lula votasse em São Paulo, alguém teria dúvidas sobre o candidato da preferência dele?"

A despeito de ter arrostado uma derrota no Supremo, Ricardo Ferraço não refluiu de sua intenção de declinar da tribuna o voto a favor da cassação de Demóstenes. Para ele, o que Celso de Mello desautorizou foi a abertura do seu voto no painel. Assim, ficou privado de provar o que diz.

Kakay considera ofensiva a discussãoo sobre a possibilidade de os senadores se aproveitarem do escurinho do voto secreto para levar ao painel uma posição diferente da expressada sob holofotes. "Isso é até injurioso", diz. Mas a realidade mostra que o preciosismo de Ferraço não é despropositado.

No primeiro processo de cassação aberto contra Renan, o acusado livrou-se da guilhotina por uma diferença de seis votos. Votaram pela cassação apenas 35 senadores. Curiosamente, 46 declararam ter votado a favor da lâmina. Quer dizer: materializaram-se no Senado pelo menos onze mentirosos.

No segundo julgamento de Renan, ao explicitar o seu voto, um Demóstenes com a biografia ainda intacta injuriou-se: "Pergunto aos senadores: o que leva os senadores da República a mentir quando votam no senador Renan Calheiros? Por que dez senadores mentiram? Uma verdade é estampada: todo brasileiro sabe que, nesses episódios, o senador Renan Calheiros é culpado. Ele faltou com respeito à Casa. Ele quebrou o decoro parlamentar."

Agora, com a reputação umedecida pelo escândalo protagonizado por Carlinhos Cachoeira, Demóstenes enuncia valores mais flexíveis. Em discurso proferido nesa segunda (10), por exemplo, disse que a mentira não é motivo para a cassação.

A despeito da dúvida que deixou pendurada no ar –"Numa votação com resultado no fio da navalha, com diferença de dois votos, há sempre a tentação de recorrer"—Kakay dá a anetender que seu cliente tende a aceitar o veredicto desta quarta, seja ele qual for.

"O senador Demóstenes tem sido muito cioso desde o início. Ele não quer ir ao Supremo. Ele me falou: 'Kakay, quero acabar com isso, quero ir ao plenário e decidir esse assunto. Quero liquidar isso.' Acho que plenário é soberano. Mas não podemos desconsiderar que houve um questionamento junto ao Supremo e há uma decisão que reforça a natureza do voto. É secreto."

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.