Código Penal: senadores já cogitam suprimir da reforma permissão de aborto e uso de maconha
Instalada há quatro dias, a comissão especial do Senado que analisa a reforma do Codigo Penal deparou-se com um dilema paralisante: as chances de aprovação dos pontos consensuais, em maioria, diminuem na proporção direta do avanço do debate sobre os poucos tópicos que despertam polêmicas viscerais.
Alçado à condição de relator da comissão, o senador Pedro Taques (PDT-MT) já farejou o cheiro de queimado. Realizou uma pesquisa no noticiário. Verificou que cinco temas, por controversos, ganharam destaque nas manchetes. Envolvem o aborto, a maconha, as casas de prostituição, a eutanásia e a homofobia.
No geral, esses assuntos receberam um tratamento liberalizante da comissão de juristas que analisou a reforma do Código Penal por sete meses. Parte dos senadores leva o pé atrás. Armam-se barricadas, por exemplo, contra a ampliação das hipóteses de aborto legal e a descriminalização do consumo de maconha.
Para não prejudicar a aprovação do naco consensual, Taques planeja postergar a análise da parte que ateia dissenso entre os colegas. Afirma que não vai fugir ao debate. Mas alega que, privilegiando o acessório, pode comprometer o essencial. Por precaução, evita posicionar-se sobre as controvérsias.
Traduzindo para o português das ruas: questionado sobre as propostas polêmicas, o relator não chega a dizer desta água não beberei. Mas quer ferver antes. "Estamos na fase de apresentação de emendas. Até por uma questão de respeito, tenho que aguardar a chegada dessas emendas, analisá-las e, só então, me posicionar."
O Código Penal em vigor é de 1940. Foi baixado por um decreto do ditador Getúlio Vargas, sob a Constituição ditatorial de 1937. O "essencial", no dizer de Taques, é "adequar o velho Código à Constituição atual e à nova realidade brasileira". Ele esmiúça o raciocínio:
"Tínhamos uma sociedade rural. Hoje, é urbana. Surgiram crimes novos, como os delitos da internet e o terrorismo. A corrupção e o enriquecimento ilícito sofisticaram-se." De resto, diz o senador, aprovou-se ao longo dos anos um cipoal de leis que fixam penas para diferentes crimes que não guardam proporcionalidade entre si.
Egresso do Ministério Público Federal, Taques contabiliza em 1.200 os crimes previstos na legislação brasileira. Ele cita dois exemplos de falta de nexo:
1. "Se dois sujeitos atacam uma pessoa no Parque do Ibirapuera e roubam-lhe o tênis, praticam roubo qualificado. A pena é de cinco anos e quatro meses de cadeia. Se um sujeito mata alguém, comete homicídio simples, com pena de seis anos. Existe aí uma clara desproporção entre dois bens jurídicos: o par de tênis e a vida."
2. "Se um sujeito entra numa empresa à noite e leva um computador, comete furto qualificado. A pena é de dois anos de reclusão. Se um servidor público corrupto desvia bilhões de reais do Tesouro a pena também é de dois anos. Não faz sentido."
Deve-se ao próprio Taques o requerimento que levou José Sarney (PMDB-AP), presidente do Senado, a convidar 15 juristas (magistrados, procuradores e advogados) para se estudar a matéria. Debruçaram-se sobre um Código Penal de 361 artigos. Produziram um projeto de novo Código com 542 artigos.
Embora pareça paradoxal, a elevação da quantidade de artigos resultou em simplificação, não o contrário. Por quê? Concentraram-se no projeto dispositivos que constam de algo como 130 leis especiais, que seriam revogadas. Além de injetar racionalidade nos processos, o novo Código Penal harmonizaria as penas, fulminando disparidades como as apontadas por Taques.
Nessa parte do trabalho, viceja o consenso. O problema é que os juristas reunidos por Sarney levaram os propósitos modernizadores às fronteiras do dogmático. Para ficar nos cinco temas que a pesquisa do relator Taques detectou como os mais encontradiços no noticiário, a coisa ficaria assim:
1. Aborto: Hoje, a interrupção da gravidez é legalmente permitida apenas em duas situações: quando decorre de estupro ou quando há risco à saúde e à vida da gestante. No projeto sugerido pelos juristas, formaliza-se a legalização do aborto de anencéfalos, coisa já reconhecida pelo STF. De resto, o texto chega muito perto da liberação indiscriminada do aborto.
Nessa versão, o Código Penal dexaria de considerar o aborto como crime quando realizado "até a décima segunda semana da gestação." Bastaria que um "médico ou psicólogo" constatasse "que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade." As chances de algo assim passar pelo filtro do Senado são próximas de zero.
2. Maconha: Na proposta dos juristas, deixam de ser crime a compra, o porte e até o cultivo de "dogras para consumo pessoal". O texto anota a certa altura: "Salvo prova em contrário, presume-se a destinação da droga para uso pessoal quando a quantidade apreendida for suficiente para o consumo médio individual por cinco dias, conforme definido pela autoridade administrativa de saúde."
Quer dizer: o sujeito pilhado com maconha suficiente para cinco dias de fumaça deixaria de ser tratado pela polícia e pela Justiça como criminoso. Na prática, libera-se o consumo da droga. De novo, a hipótese de semelhante novidade furar o conservadorismo do Senado é zero.
3. Casas de prostituição: no velho Código Penal, o funcionamento de "casas de tolerância" e "lupanários" é tipificado como crime. No projeto dos juristas, deixa de ser. Parte dos senadores não convive pacificamente com a ideia de permitir que bordéis passem a operar sob a proteção da lei e do Estado.
4. Eutanásia: no projeto dos juristas, a prática continua sendo considerada criminosa. Mas sugere-se o abrandamento das penas. De resto, descriminalisa-se a ortotanásia. A diferença entre um procedimento e outro é sibilina. Condenada pelos médicos, a eutanásia é o aceleramento da morte de um paciente por meios artificiais. Admitida pelo Conselho Federal de Medicina, a ortotanásia é a não interferência dos médicos no processo natural de morte de um doente.
Nos dois casos, presume-se que o paciente é portador de doença crônica e encontra-se em estágio terminal. Na eutanasia, age-se para acelerar a morte. Na ortotanásia, deixa-se de agir para prolongar artificialmente a vida. A proposta de nova Código autoriza expressamente o segundo procedimento ao anotar:
"Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão." Nesse ponto, a concordância da classe médica pode vencer resistência. Mas a aprovação, se vier, não será isenta de polêmica.
5. Homofobia: Os juristas sugerem que passe a ser considerado crime todo ato de discriminação em razão da opção sexual. Algo que deixa a bancada da Bíblia de cabelos hirtos. Numa tentativa de contornar as resistências, os autores do texto abstiveram-se de proibir os padres e os pastores evangélicos de pregar contra o homossexualismo em suas igrejas. Ainda assim, remanesce a polêmica.
Em essência, são esses os temas cujo debate o relator Pedro Taques pretende postergar para evitar que contaminem o pedaço incontroverso da reforma do Código. A comissão que se dedica ao tema é composta de 11 senadores. O presidente é o senador Eunício Oliveira (PNDB-CE). O vice-presidente é Jorge Viana (PT-AC).
Pelo regimento, o colegiado tem até o final de setembro para transformar a proposta dos juristas num projeto em condições de ser votado pelo plenário do Senado. Esse prazo pode, porém, ser prorrogado. Algo que deve ocorrer. Se sobreviver ao debate do Senado, o novo Código Penal será enviado para a Câmara. Ou seja: além de envenenado, o debate será longo. Com otimismo, é coisa para dois anos. Com pessimismo, três ou quatro.
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