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Josias de Souza

Ministro do STF compara tribunal a uma panela de pressão com a válvula de escape defeituosa

Josias de Souza

28/09/2012 05h34

O julgamento do mensalão elevou a temperatura do STF a níveis próximos do ponto de ebulição. Na noite passada, em conversa com o blog, um dos ministros do tribunal comparou o plenário a um conhecido utensílio doméstico. "A Suprema Corte virou uma penela de pressão", disse.

"É normal que isso ocorra de vez em quando", acrescentou. "O problema é que, de uns tempos para cá, a válvula passou a dar defeito. Normalmente, as diferenças são dissolvidas no interior da penela, hermeticamente fechada. Agora, estamos deixando escapar muito mais do que o vapor habitual. O cheiro não é bom."

A fervura do Supremo sobe na proporção direta da aproximação do julgamento dos grão-petistas José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares. No capítulo que se encontra sob apreciação, pelo crime de corrupção ativa. Em fatia posterior, pelo delito de formação de quadrilha. O odor, de fato, não é bom.

Nas últimas horas, o prédio assentado atrás da escultura da Justiça, do artista Alfredo Ceschiatti, passou a exalar um incômodo cheiro de queimado. Nas pegadas de uma sessão em que o relator Joaquim Barbosa acusou o revisor Ricardo Lewandowski de fazer "vista grossa" para as provas e de atentar contra a "transparência", escalou as manchetes uma nova desavença.

Vinte e quatro horas depois de ter tomado as dores de Lewandowski, recomendando a Barbosa que moderasse o linguajar, Marco Aurélio Mello instilou na atmosfera a suspeita de que o colega relator não dispõe do necessário equilíbrio para presidir o Supremo.

Atual vice-pesidente do STF, Barbosa vai à presidência daqui a 51 dias. O atual ocupante da cadeira, Ayres Britto, aposenta-se em 18 de novembro. Por mal dos pecados, Barbosa terá como vice o desafeto Lewandowski. Reza a praxe que, embora seja precedida de votação formal, a sucessão se dê automaticamente.

Marco Aurélio cuidou de insinuar que a tradição não precisa ser necessariamente seguida. "Eu fico muito preocupado diante do que percebo no plenário. Eu sempre repito: o presidente é um coordenador, é um algodão entre cristais, não pode ser metal entre os cristais", disse ele no intervalo da sessão desta quinta (27).

Realçou que a ascensão do colega ainda não está sob risco. Mas espetou: "Vamos aguardar novembro, é muito cedo. E, afinal, o voto […] é um voto secreto. Há cédulas que são distribuídas e realmente nós temos a designação de um escrutinador e a proclamação de um resultado. Não é por aclamação."

Abespinhado, Barbosa reagiu de bate-pronto. Horas depois, numa manifestação veiculada pela repórter Carolina Brígido, alvejou Marco Aurélio abaixo da linha da cintura. Insinuou que o colega de toga só ganhou um assento no STF por conta do parentesco com o ex-presidente Fernando Collor de Mello, seu primo e patrono de sua indicação.

"Ao contrário de quem me ofende momentaneamente, devo toda a minha ascensão profissional a estudos aprofundados, à submissão múltipla a inúmeros e diversificados métodos de avaliação acadêmica e profissional. Jamais me vali ou tirei proveito de relações de natureza familiar", bateu Barbosa, cuja indicação foi feita por Lula.

De pavio aceso, Barbosa deu a entender que o encreiqueiro do tribunal não é ele. "Um dos principais obstáculos a ser enfrentado por qualquer pessoa que ocupe a presidência do Supremo Tribunal Federal tem por nome Marco Aurélio Mello. Para comprová-lo, basta que se consultem alguns dos ocupantes do cargo nos últimos 10 ou 12 anos." Disse tudo isso e ainda grudou Marco Aurélio a pecha de juiz de decisões esdrúxulas.

"Caso venha a ter a honra de ser eleito presidente da mais alta Corte de Justiça do nosso país nos próximos meses, como está previsto nas normas regimentais, estou certo de que de mim não se terá a expectativa de decisões rocambolescas e chocantes para a coletividade, de devassas indevidas em setores administrativos, de tomadas de posição de claro e deliberado confronto para com os poderes constituídos, de intervenções manifestamente 'gauche', de puro exibicionismo, que parecem ser o forte do meu agressor do momento."

O ministro que se dispôs a conversar com o repórter na noite desta quinta referiu-se à altercação entre Marco Aurélio e Barbosa como "evidência de que a panela de pressão foge ao controle." Enalteceu o esforço de Ayres Britto para conduzir o julgamento do mensalão sob "ambiente ordeiro". Porém…

Expressou o receio de que o esgarçamento dos ânimos prevaleça sobre o temperamento acomodatício do presidente. Disse que a irascibilidade de Barbosa não orna com os resultados que ele vem obtendo no plenário. Afirmou que os colegas estranham sobretudo a forma rude com que reage aos contrapontos do revisor Lewandowski.

Deve-se o estranhamento ao fato de que, ressalvadas poucas exceções, as posições do relator vêm prevalecendo sobre os votos do revisor. Conforme noticiado aqui às vésperas do início do julgamento, os ministros do STF já previam que a apreciação do mensalão seria feita contra um pano de fundo tisnado pelas divergências entre Barbosa e Lewandowski.

Ainda assim, avalia-se agora que o comportamento de Barbosa leva a panela a ferver num grau acima do razoável. Algo que empurra o STF para uma situação paradoxal. Num instante em que a maioria dos ministros brinda a sociedade com a condenação em série dos réus, a brigalhada ganha o espaço de manchetes que poderiam ser monopolizadas pela novidade do fim da Era da impunidade.

Barbosa está no epicentro do paradoxo. Em boa medida, a profusão de condenações se deve a um modelo que ele engendrara em 2007, quando da aceitação da denúncia, e repete agora. Do modo como fatiou a denúncia, o relator favoreceu a compreensão do escândalo.

A apresentação do capítulo anterior ilumina os meandros do capítulo subsequente. Subvertendo a ordem dos capítulos apresentados na denúncia da Procuradoria, Barbosa deu prioridade às verbas. Esmiuçada a origem pública da dinheirama, passou à lavagem de dinheiro atribuída a Marcos Valério, seus ex-sócios e os ex-dirigentes do Banco Rural.

Na sequência, foi ao capítulo da imputação de gestão fraudulenta de instituição financeira, trecho em que os pseudo-empréstimos contraídos pelo PT e pelas empresas de Valério no Rural ganharam a definitiva aparência de operações de fancaria. Agora, a lâmina desce sobre o pescoço dos sacadores da verba suja.

Nesse encadeamento de novela, o julgamento passará pelos corruptores ativos do PT, pelos sacadores da legenda, pela evasão de divisas de Duda Mendonça, até chegar ao grand finale: a acusação de formação de quadrilha formulada contra Dirceu, Genoino e Delúbio.

O problema é que, a despeito do êxito fulgurante que vem obtendo, Barbosa não consegue conter a língua inquieta. Dá azo ao estilo que o fez um crônico colecionador de desafetos. Já foi acusado de "ter complexo". Último a esgrimir a insinuação em público, o recém-aposentado Cezar Peluso foi acusado por ele de manipular entre as quatro paredes da presidência do STF resultados sacramentados em plenário. Ficou por isso mesmo.

Noutro embate acalorado, Barbosa pespegou em Eros Grau, também aposentado, o epíteto de "caquético". Eros passou muito tempo sem cumprimentá-lo. Só voltou às boas graças a uma mediação operada por Ayres Britto. Os embates com Marco Aurélio são frequentes. Num deles, Barbosa foi convidado a resolver a desavença "lá fora".

Gilmar Mendes mantém com Barbosa apenas diálogos funcionais e monossilábicos. Nunca se bicaram. Afastaram-se de vez num rififi captado pelas lentes da TV Justiça e eternizado na internet. "Vossa Excelência não pode pensar que pode dar lição de moral aqui", disse a certa altura um Gilmar já fora de si. "Eu não quero dar lição de moral", rebateu Barbosa. "Vossa Excelência não tem condições", treplicou Gilmar. E Barbosa, fechando a conta: "E Vossa Excelência tem?" (reveja a cena abaixo).

A turma dos panos quentes operava na noite passada para tentar conter os ânimos de Barbosa e Marco Aurélio. A dupla se reencontrará na sessão marcada para a próxima segunda-feira. Reza-se para que o final de semana opere o milagre da pacificação. Do contrário, o chiado da panela tende a tornar-se ensurdecedor. Tudo isso às portas do julgamento da tróica Dirceu-Genoino-Delúbio pela primeira imputação, a de corrupção ativa. Prevê-se que, ao menos em relação a Dirceu, o revisor Lewandowski proferirá um voto crivado de contrapontos.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.