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Josias de Souza

Valério pode pagar multa de R$ 5,5 milhões por cobrar do PT empréstimos fictícios do mensalão

Josias de Souza

13/10/2012 04h01

No auge do escândalo do mensalão, em 2005, as empresas ligadas a Marcos Valério –SMP&B, Graffiti e Rogério Lanza— protocolaram na Justiça uma ação contra o PT. Na petição, Valério e seus sócios cobram os pseudo-empréstimos bancários que nutriram o caixa do partido de Lula. Corrigida monetariamente, a suposta dívida foi fixada em R$ 100 milhões.

O repórter Marcelo Rocha foi verificar o andamento do processo. Descobriu que a esperteza de Valério, como um bumerangue, voltou-se contra ele. Pode render ao operador do mensalão uma multa de R$ 5,5 milhões. A encrenca corre na 11a Vara Cívil de Brasília.

Titular da Vara na época em que a ação de "cobrança" foi ajuizada, o juiz Paulo Cerqueira Campos enxergou na iniciativa uma manobra. Tratava-se de mais uma tentativa de dar aparência legal a operações bancárias fraudulentas. Em despacho saneador, o magistrado concluiu: os empréstimos "não passam de dissimulação". Como a execução da "dívida" não fazia nexo, impôs a multa milionária aos "cobradores".

Os advogados de Valério recorreram ao Superior Tribunal de Justiça. Coube ao ministro Massami Uyeda analisar a pendenga. Ele devolveu os autos à primeira instância do Judiciário e ordenou que fosse feita uma perícia contábil para verificar se os empréstimos supostamente concedidos pelas casas bancárias do mensalão –Banco Rural e BMG— existiram de fato.

A essa altura, o juiz Paulo Cerqueira já havia se desligado 11a Vara Cívil de Brasília. Fora substituído pela magistrada Iêda Garcez Dória. No último dia 18 de junho, ela acionou um escritório de contabilidade que se especializou em realizar perícias judiciais. Chama-se Fernando Guarany & Mousinho Peritos Contábeis.

Alcançado pelo repórter, Fernando Guarany, um senhor grisalho de 50 anos, informou que ainda não concluiu a empreitada. "A primeira providência foi uma leitura completa dos autos", disse. Agora, prepara-se para esquadrinhar os contratos e os fluxos financeiros das empresas de Valério para verificar se a dívida existe.

Iniciado no Supremo Tribunal Federal apenas 45 dias depois de a Justiça ter encomendado a realização da perícia, o julgamento do mensalão tornou o trabalho de Guarany, por assim dizer, desnecessário. Considerando-se as decisões já tomadas pelos ministros do STF, o despacho do juiz Paulo Cerqueira revelou-se premonitório.

Já ficou assentado no STF que os empréstimos resultaram de fraudes. Destinaram-se a encobrir desvios de verbas públicas. Numa das várias intervenções que fez ao longo do julgamento, o ministro Marco Aurélio Mello chegou mesmo a declarar que eventuais ações judiciais de cobrança se tornariam peças mortas.

A despeito disso, o perito Guarany não se deu por achado. Disse que prefere não entrar no "mérito" das deliberações do Supremo. "Não posso partir dessa premissa para não sermos influenciados", ele declara. "Temos capacidade técnica e experiência necessárias para atuar neste caso."

De desfecho previsível, o processo movido por Valério contra o PT abriga documentos que, confrontados com as sentenças do STF, ganham a aparência de peças de humor negro. Numa petição de 20 folhas, o advogado Rodolfo Gropen, a serviço das empresas SMP&B, Graffiti e Rogério Lanza anotou a certa altura:

"No período entre 21 de fevereiro de 2003 e 1o de outubro de 2004, as empresas disponibilizaram ao PT recursos financeiros em diversas ocasiões a título de empréstimo. O destino dos recursos era sempre determinado por Delúbio Soares", o ex-tesoureiro do PT. É nessa peça que o "débito" do petismo foi orçado em R$ 100 milhões.

A comédia é levada às fronteiras do paroxismo noutro documento. Tem 13 páginas. Foram redigidas pelos advogados do PT para contestar a "cobrança". O texto tenta dissociar o partido da confusão. Acomoda as operações financeiras no colo do companheiro da tesouraria.

"Delúbio, assim como Marcos Valério, despreza as leis e as mais corriqueiras convenções que regem as pessoas jurídicas", anota a peça. Não há vestígio de menções a José Dirceu. Nem sinal de José Genoino, signatário de algumas das notas promissórias do mensalão.

Ouvido, o doutor Márcio Luiz Silva, um dos advogados do PT no processo, qualificou a cobrança de "ficção". Tratou Delúbio de modo draconiano. "O partido não deve isso. Deve ter sido celebrado um acordo entre Delúbio e a SMP&B. Se a SMP&B quer que alguém pague, vai cobrar o Delúbio. Delúbio, pessoa física, não se mistura como Partido dos Trabalhadores."

Quer dizer: o PT sustenta no processo movido por Valério uma tese que orna mais com os veredictos do Supremo do que com os memoriais de defesa dos advogados dos réus do mensalão, inclusive os petistas. Na primeira instância, o PT fala em "ficção". Na Corte Suprema, os petistas falam em empréstimos legítimos, destinados a irrigar o caixa dois de campanhas políticas.

Nos dois casos, Delúbio aparece como gênio financeiro. Tenta-se convencer a plateia de que um personagem subalterno na estrutura partidária, cavou sozinho os milhões que desceram, como num passe de mágica, à caixa registradora do PT. A caminho de concluir o julgamento, o STF fez da comédia uma tragédia.

Valério e seus sócios já foram condenados por uma variedade de crimes. Entre eles peculato, lavagem de dinheiro e corrupção ativa. A cúpula do Rural foi enquadrada no delito de gestão fraudulenta de instituição financeira. E Delúbio foi ao rol dos culpados na companhia de Dirceu e Genoino, condenados como corruptores ativos. Por tudo isso, o processo de "cobrança" movido por Valério virou um hilário bumerangue de R$ 5,5 milhões.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.