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Josias de Souza

Na campanha dos outros, o ‘kit gay’ é refresco

Josias de Souza

17/10/2012 08h32

O excesso de esperteza fez do tucano José Serra um candidato sui generis. Para grudar no rival Fernando Haddad a pecha de antirreligioso, guindou a homofobia à condição de tema central da disputa pela prefeitura de São Paulo. Pilhado em contradição, passou a irritar-se com repórteres. Quer mudar de assunto.

Depois de melindrar-se com a mineira Dilma Rousseff por "meter o bico" em São Paulo, Serra como que terceirizou ao telepastor carioca Silas Malafaia os ataques de timbre moral a Haddad. O líder religioso criticou a gestão do candidato de Lula no Ministério da Educação.

Entoando um discurso que o próprio Serra encamparia na sequência, Malafaia mirou sobretudo no kit antihomofobia que a pasta da Educação encomendara a uma ONG no ano passado. O 'Kit gay', como prefere Malafaia, seria distribuído a alunos de escolas públicas.

A bancada da Bíblia no Congresso enxergou nas peças não lições de respeito às diferenças, mas estímulos ao homossexialismo. Sob bombardeio, Dilma Rousseff mandou o material ao arquivo, fornecendo a munição que Malafaia e Serra utilizam agora.

Súbito, a repórter Mônica Bergamo informou que, em 2009, o governo de São Paulo, sob Serra, enviara às escolas da rede pública do Estado material semelhante. Coisa preparada pela mesma ONG contratada pelo MEC. As peças não são idênticas, apressou-se em alardear Serra. Foram distribuídas aos professores, não aos alunos, realçou.

A imprensa –ou parte dela— foi ao calcanhar. Pouco afeito ao contraditório, o tucano acionou o bico. Numa entrevista à rádio CBN, foi inquirido pelo repórter Kennedy Alencar. "[…] Sua atitude é uma contradição por conveniência eleitoral ou o senhor se tornou conservador?" E Serra: "Eu sei que você tem preferências políticas mas, modere, você não pode fazer campanha eleitoral aqui."

Noutra entrevista, uma repórter perguntou a Serra se o tom agressivo de sua campanha tem a ver com as pesquisas que o desfavorecem. As plumas eriçaram-se: "Vai lá pro Haddad. É a pauta dele. Você não precisa trabalhar pra ele. Ele já tem bastante assessor."

Num terceiro encontro de Serra com os microfones, de novo a homofobia: "Está faltando esclarecer se o senhor concorda ou não com esse tipo de orientação nas escolas", observou uma repórter. "Não está faltando esclarecer nada. Você leu? Eu pergunto se você leu." Lero vai, lero vem, Serra emendou: "Vai lá com o Haddad e trabalha com ele. É mais eficiente."

Serra tornou-se escravo do seu tema-bumerangue. Instado a explicar-se, complica-se. Potencializa a fama de personagem avesso à imprensa que imprensa. Ainda não se deu conta. Mas flerta com o ridículo. Político que se queixa do noticiário é como capitão de navio que reclama da existência do mar.

Moral um, à moda de Tancredo Neves: Esperteza, quando é muita, come o dono.

Moral dois, à maneira do provérbio: 'Kit gay' na campanha dos outros é refresco.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.