Após perder a inocência, José Dirceu revala em nota que perdeu também o sentido da realidade
O Estado Democrático de Direito está sob risco, sustentou José Dirceu em texto veiculado no seu blog. Rendido à "sede" de condenar, o STF aviltou o princípio constitucional da "presunção da inocência". Fechou os olhos para as "provas produzidas pela defesa". Com isso, pôs em risco "as liberdades e garantias individuais."
Dependendo da dosagem da pena, Dirceu pode ser enviado à cadeia. Mas não é isso que o deixa inquieto. O que preocupa o ex-todo-poderoso do PT é o destino dos brasileiros indefesos como ele. Acha que as decisões do STF servirão de "norte para a condenação de outros réus inocentes país afora."
No intervalo de duas semanas, o STF transferiu Dirceu do mundo dos presumivelmente inocentes para o universo dos culpados. Converteu-o em 'corruptor' e 'quadrilheiro'. Mas não conseguiu demolir sua pose de vítima. Ao contrário. Dirceu agora reivindica, por assim dizer, o título de mártir.
"Vou continuar a luta para provar minha inocência", escreveu. Mas não é só. Promote levar sua luta mais longe. Quer "assegurar que garantias tão valiosas ao Estado Democrático de Direito não se percam em nosso país." São intenções nobres. Sobretudo quando se considera a dificuldade que Dirceu terá para exercitar o altruismo atrás das grades.
Por sorte, a injustiça do STF é café pequeno para um personagem que faz parte da "geração que lutou pela democracia e foi vítima dos tribunais de exceção." Quem enfrentou o Brasil ditatorial do AI-5 "sabe o valor da luta travada para erguer os pilares da nossa atual democracia." Uma pessoa com esse perfil tem autoridade para proclamar: "Condenar sem provas não cabe em uma democracia soberana."
Dirceu pega em lanças com a legitimidade dos justos. "Nunca fiz parte nem chefiei quadrilha", ele brada em seu texto. Foi condenado "com base em indícios". Repete: "Apenas o corréu Roberto Jefferson sustenta a acusação contra mim em juízo." Meras "ilações". Tudo rebatido "de maneira robusta pela defesa".
"As reuniões na Casa Civil com representantes de bancos e empresários são compatíveis com a função de ministro", demonstrou a defesa. O réu jamais discutiu nesses encontros os "empréstimos" fictícios que irrigaram o mensalão. Bem verdade que as "ilações" de Jefferson foram comprovadas pela Polícia Federal de Lula. Mas quem são os ministros do STF para estragar com fatos uma versão conveniente?
As audiências na Casa Civil foram agendadas por Marcos Valério. E daí? O operador do mensalão participou das conversas. Quem se importa? Valério providenciou um comprador para o apartamento da ex-mulher de Dirceu. Ajeitou um empréstimo bancário para que ela pudesse comprar um imóvel maior. Providenciou-lhe um emprego. É óbvio que o ex-marido não sabia de nada disso.
O ministro Ayres Britto diz que as provas expõem "as vísceras" da quadrilha. Celso de Mello declara que os réus perderam a noção "de República" e "devem ser punidos como delinquentes". Joaquim Barbosa sustenta que Dirceu "chefiou" o bando. Quadrilhas de "paletó e gravata" causam "mais desassossego" do que a bandidagem dos morros, diz o relator.
E Dirceu: "Fica provado que nunca tive qualquer relação com o senhor Marcos Valério." Claro que não. Só um "tribunal de exceção" não enxergaria. "Todos os depoimentos confirmam a legalidade dos encontros" que o réu manteve com "as lideranças parlamentares e partidárias" da base aliciada do governo. "Acumulava a função de ministro da articulação política."
Que diabos, era seu "dever de ofício" conversar com deputados e senadores. Verificou-se que, simultaneamente, formava-se na Câmara uma maioria "argentária", na definição de Ayres Britto. Os votos eram azeitados na base da "pecúnia". E dinheiro, como disse Barbosa, "não nasce em árvore".
No caso do mensalão, restou demonstrado que as verbas nasceram do peculato que levou à invasão de arcas públicas. Foram adubadas e regadas na lavanderia bancária dos empréstimos de fancaria. Algo que permitiu à quadrilha frequentar o Legislativo "armada de dinheiro", como realçou Marco Aurélio Mello.
Mas Dirceu, demonstrou a defesa, não teve nada a ver com nada. Se Lula e José Genoino, que presidiam a República e o PT respectivamente, não sabiam de coisa nenhuma, por que Dirceu, um reles primeiro-ministro, deveria saber? Ora, senhores juízes, francamente. Decerto não tiveram infância. Nunca ouviram falar de mula sem cabeça.
Só a "sede" de condenação pode justificar a cegueira das togas para o óbvio: foi Delúbio Soares quem cuidou de tudo! Por que sonegar ao tesoureiro as qualidades de gênio do empreendedorismo partidário? "Os autos falam por si", anota Dirceu. "Qualquer consulta às suas milhares de páginas, hoje ou amanhã, irá comprovar a inocência que me foi negada neste julgamento."
Inocência? Isso o processo talvez não comprove. Mas o texto de Dirceu revela-se útil. Sua serventia está na revelação de que mesmo personagens confrontados com uma realidade cruel não estão perdidos. Podem refugiar-se no mundo do inacreditável. De resto, o pronunciamento do injustiçado mostra que "outros réus inocentes" não serão condenados sem resistência.
O velho Dirceu já não é a voz mais abalizada para esgrimir a defesa de "garantias tão valiosas ao Estado Democrático de Direito" como a "presunção da inocência". Porém, como defensor de seus congêneres –sejam eles inocentes culpados ou culpados inocentes— o novo Dirceu que emerge do julgamento do Supremo está de bom tamanho.
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