Topo

Josias de Souza

CPI diverte e desobriga o Brasil de fazer sentido

Josias de Souza

22/11/2012 06h47

Depois que Lula apoiou a instalação da CPI do Cachoeira e o presidente do PT Rui Falcão declarou que a comissão serviria para desmontar a "farsa do mensalão", ficou todo mundo desobrigado de fazer sentido no Brasil. Decorridos sete meses desde a instalação da CPI, alguns congressistas reclamam do relatório final. Acham que o texto do relator Odair Cunha (PT-MG) vinga-se dos 'inimigos' do partido dele e poupa os 'amigos' do governo. São saudosistas. Falam como se vivessem num país em que as palavras ainda tivessem algum sentido.

Reclamam que a CPI só investigou o que já fora investigado. Não levam em conta que a sujeira ultrapassou os limites do conveniente. Se tudo não acabasse embaixo do gigantesco tapete metafórico, aonde a coisa iria parar? Bem verdade que dessa vez sobrou muito detrito em volta –a Delta e seus milionários contratos no PAC, os repasse$ para o laranjal, os políticos escondidos atrás ds bagaceira e o infindável etcétera. Mas, que diabos, queriam que Lula, o PT e a base aliciada levassem a apuração às últimas consequências? Ora, francamente! E o vale-tudo semântico, onde é que fica?

Os críticos ignoram o essencial: o relatório de Odair Cunha, por inqualificável, é muito fácil de qualificar. Não responde às perguntas essenciais, mas garante um grand finale para a CPI. Já estava entendido que as mais de 5 mil páginas do relator seriam escritas para fazer o contraponto com o mensalão, agora convertido pelo STF em mais do que um mero embaraço. Sim, é verdade, Odair esqueceu de maneirar. Mas é no exagero que reside a graça do documento. A peça –ou uma parte dela— será lida nesta quinta-feira. Um pedido de vista coletivo prolongará a encenação por mais cinco dias. Serão dias fascinantes.

O documento sugere o indiciamento de personagens já processados (Cachoeira e seu bando). Alegria. Indicia pessoas que nem sequer foram investigadas (o repórter de 'Veja' Policarpo Júnior, por exemplo). Júbilo. Pede a criminalização de políticos que, enrolados, já respondem a inquéritos nos tribunais (os tucanos Marconi Perillo e Carlos Leréia). Satisfação. Acusa o procurador-geral Roberto Gurgel de engavetar a Operação Vegas, avó da Monte Carlo. Mas não tem a coragem de pedir contra ele a abertura de processo por crime de responsabilidade. Risos. Cita meia dúzia de bagrinhos do governo de Brasília. E omite o nome do governador petista Agnelo Queiroz. Gargalhadas.

Considerando-se a composição da CPI, o PT dispõe de maioria para aprovar a pantomima. O problema é que alguns aliados ameaçam claudicar em sua lealdade. É o caso do PMDB. O partido é grato a Odair por ter poupado o filiado Sérgio Cabral e a turma do guardanapo. Mas precisava comprar briga com a imprensa e com o procurador-geral?, perguntam-se os sócios do conglomerado, já meio cansados da parceria.

Parecem esquecer que vivem uma nova era. No tempo em que as palavras ainda faziam sentido, lealdade ornava com honradez. Nessa época, políticos eram leais aos seus mandatos e aliados dos seus representados e de suas próprias consciências. No país que se desobrigou de fazer nexo, devem fidelidade a quem dispõe de estrutura para mantê-los no palco. Ou no picadeiro.

Não há dúvida: o relatório de Odair transformou a CPI em circo. Por outro lado, se milhões de brasileiros aceitam gostosamente o papel de palhaços, por que os aliados de sempre, já tão habituados ao malabarismo verbal e ao trapezismo ideológico, recusariam agora o figurino de parlamentares amestrados? Há na comissão gente sem vocação para palhaçadas. Congressistas que refugam os narizes vermelhos, os colarinhos folgados e os sapatos grandes. Porém…

Enquanto aguarda por uma definição do PMDB, esse pessoal, em minoria, protocolará na Procuradoria um requerimento para que os procuradores procurem o que a CPI não quis procurar. Assinam a petição quatro gatos pingados: Pedro Taques (PDT-MT), Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), Rubens Bueno (PPS-PR) e Onix Lorenzoni (DEM-RS). A iniciativa produz algum embaraço para CPI. Nada capaz, porém, de comprometer a graça do espetáculo. Ainda que a marmelada desande, os próximos dias serão muito divertidos. Recém-liberto, Carlinhos Cachoeira já deve ter encomendado a pipoca.

– Ilustração via Orlandeli.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.