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Josias de Souza

Para driblar STF e repartir dinheiro do petróleo, congressistas simulam votação de 3.060 vetos

Josias de Souza

19/12/2012 06h28

Reunidos em sessão conjunta das duas Casas do Congresso, deputados e senadores protagonizarão nesta quarta-feira (10) uma grande pantomima. Simularão a votação de 3.060 vetos presidenciais impostos a leis aprovadas pelo Legislativo. O veto mais velho tem 12 anos. Publicado em 2000, traz a assinatura de Fernando Henrique Cardoso, o presidente da República de então.

Embora inusual, a farsa não é inédita. Há pouco mais três anos, em 6 de maio de 2009, já sob a presidência de José Sarney, o Congresso fingiu analisar 943 vetos numa única noite. Tangidas pelos respectivos líderes, as bancadas portaram-se no plenário como manadas. A maioria dos parlamentares não tinha ideia do que estava sendo deliberado. Alguns expressaram seu desconforto no microfone.

Além da quebra do recorde –agora serão 2.117 vetos a mais— o que diferencia a encenação atual da de 2009 é a motivação pecuniária. Deseja-se derrubar os vetos que Dilma Rousseff apôs a um lote de artigos da Lei dos Royalties. Com esses vetos, a presidente beneficiou os Estados produtores de petróleo: Rio, Espírito Santo e São Paulo. Livrou-os de ter que dividir com o resto do país os dividendos de jazidas petrolíferas que já se encontram sob exploração.

O diabo é que as outras 24 unidades da federação não aceitaram pacificamente a ideia de partilhar apenas os royalties das futuras jazidas. Querem começar a beliscar um pedaço do dinheiro do petróleo já em 2013. Por isso, decidiram derrubar os vetos de Dilma, restituindo o texto original da lei que havia sido aprovada no Congresso. Para furar a fila dos vetos antigos, aprovou-se um pedido de urgência.

Acionado por um deputado carioca, Alessandro Molon (PT-RJ), o ministro conterrâneo Luiz Fux, do STF, levou o pé à porta. Expediu uma liminar determinando que os vetos dos royalties fossem ao final da fila. Se quiser derrubá-los, a turma dos sem-óleo terá de apreciar todos os vetos antigos, em ordem cronológica. Em resposta à interferência do Supremo, Sarney e os líderes partidários decidiram reeditar, em versão ampliada, a manobra da pseudovotação coletiva de vetos.

Na simulação de 2009, os 943 vetos ocuparam uma apostila de 57 folhas. No teatro desta quarta-feira, os 3.060 vetos foram enfiados num cartapácio de 463 páginas. Como não se pode realizar em poucas horas o trabalho adiado por 12 anos, as manadas partidárias estão sendo orientadas a deixar em branco as cédulas dos vetos velhos, concentrando-se nas que se referem ao petróleo.

Além de ser feita por meio de cédulas, a votação dos vetos presidenciais é secreta. A coisa é organizada de modo a tornar-se indecifrável para os parlamentares. Disponível aqui, a apostila com os 943 vetos analisados em 2009 dá uma ideia da complexidade do processo. A título de exemplo, tome-se o item 28 do documento. Foi grafado assim:

Item 28

PROJETO DE LEI DA CÂMARA Nº 62, DE 2004

Discussão, em turno único, do veto parcial aposto ao Projeto de Lei da Câmara nº 62, de 2004 (nº 3.846/2000, na Casa de origem), que "Cria a Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC, e dá outras providências". (Mensagem nº 117, de 2005-CN) (Veto Parcial nº 28, de 2005)

Partes vetadas:

– § 1º do art. 14;

– art. 23;

– "caput" do art. 30;

– parágrafo único do art. 30;

– § 3º do art. 36;

– "caput" do art. 38;

– § 1º do art. 38;

– § 2º do art. 38;

– § 1º do art. 39;

– "caput" do art. 44;

– parágrafo único do art. 44;

"caput" do art. 48;

§ 2º do art. 48;

§ 2º do art. 49." 




Pois bem. À frente de cada item como esse, o documento trazia três quadradinhos. Num, a letra 'S' de sim, para os que desejavam manter o veto. Noutro, o 'N' de não, para os que queriam derrubar o veto. No último, o 'A' de abstenção, para os que preferiam o muro. Na farsa de 2009, alguns partidos governistas chegaram a entregar aos seus congressistas apostilas já preenchidas.

Alegou-se que os vetos envolviam matérias incontroversas e, portanto, não valeria a pena derrubá-los. Era lorota. O item 28 da apostila, esse que foi reproduzido acima, referia-se ao projeto que criara a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). Entre os pedaços que Lula havia passado na lâmina estava o parágrafo primeiro do artigo 14. No documento entregue aos congressistas o naco vetado fora identificado assim: "§ 1º do art. 14".

Omitiu-se o essencial, o teor do texto suprimido pelo presidente: "[…] Será causa da perda do mandato [dos dirigentes da Anac] a inobservância por diretor dos deveres e proibições inerentes ao cargo, inclusive no que se refere ao cumprimento das políticas estabelecidas para a aviação civil pelos Poderes Executivo e Legislativo". Sem esse parágrafo, a lei sancionada por Lula fez da Anac uma agência com diretores, por assim dizer, indemissíveis.

O problema veio à tona na época em que o Brasil arrostou o caos aéreo. Nelson Jobim, então ministro da Defesa, quis demitir os diretores da Anac. Impedido pela lei, teve de recorrer a velhos métodos. Fritou os diretores ineptos. Bem passados, pediram pra sair. Derrubando o veto de Lula, o Congresso teria tornado as coisas mais simples. Mas para isso seria preciso saber o que estava sendo votado.

Ao postergar a análise dos vetos presidenciais, o Legislativo torna-se uma Casa ilegal. Pela Constituição, o presidente é obrigado a sancionar ou vetar uma lei 15 dias úteis depois da chegada da peça ao Planalto. Optando pelo veto, tem de informar ao Congresso em 48 horas. E os parlamentares são –ou deveriam ser— obrigados a analisar os vetos em no máximo 30 dias. Esse prazo virou letra morta.

Eleito presidente do Senado nas pegadas do Renangate, Garibaldi Alves (PMDB-RN) encontrou na gaveta um monturo de vetos. Em 6 de fevereiro de 2008, na abertura do ano legislativo, contabilizou-os em 885. Manifestou o desejo de limpar a pauta. Duas semanas depois, Marco Maciel (DEM-PE), à época presidente da comissão de Justiça do Senado, revelaria que a encrenca era maior: os vetos por apreciar somavam 1.234, não 885. O mais velho fizera aniversário de 14 anos. Fora assinado no último ano da gestão de Itamar Franco (1993-1994).

Na fatídica embromação de 6 de maio de 2009, já sob Sarney, os congressistas eliminaram parte desse contencioso. Votando às escuras, mantiveram os vetos. Um pouco por desinformação, como ficou claro no caso da Anac. Uma parte por desinteresse. De resto, vigora o entendimento de que não faz sentido ressuscitar artigos vetados anos depois que uma determinada lei entrou em vigor. Sob pena de instaurar no Brasil o império da insegurança jurídica.

O essencial é perceber o seguinte: os parlamentares podem manter ou derrubar os vetos de um presidente (41 votos de senadores e 257 de deputados). O que a Constituição não prevê, por absurda, é a inaceitável demora de 12 anos, de 14 anos para deliberar sobre um veto. O texto constitucional também não contempla, por impensável, a deliberação simultânea –e às cegas— de tantos vetos em poucas horas.

Na prática, ao desdenhar da análise dos vetos presidenciais, o Congresso abdica de sua mais nobre atribuição: a de dar a palavra final no processo de elaboração das leis. Hoje, além de legislar por meio de medidas provisórias, o Planalto diz, por meio dos vetos, quais são as leis que devem entrar em vigor e as que vão para o lixo.

Na sessão desta quarta-feira, parlamentares do Rio e do Espírito Santos se revezarão no microfone de apartes para protestar contra a decisão de "votar" os vetos a toque de caixa e no vai da valsa. Mas as críticas serão motivadas pelo dinheiro do petróleo, não pela necessidade de valorizar o Parlamento. É sob essa atmosfera de vale-tudo que a turma do vai ou racha deve prevalecer. O prestígio do Congresso, já abaixo de barriga de cobra, sairá mais rachado. Mas quem se importa?

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.