Topo

Josias de Souza

Vídeo exibe o desvio de verbas que deveriam acudir vítimas de enchente em Nova Friburgo

Josias de Souza

19/01/2013 03h39

No Brasil, desvia-se até a verba do socorro às vítimas de enchentes. Pense apenas nisso por um instante. Esqueça o 'pibinho' de 1% e a inflação de 5,84% de 2012. O dinheiro destinado a acudir brasileiros castigados pelas irrupções da natureza é curto e só costuma chegar após a consumação dos flagelos. E ainda é surrupiado.

O vídeo que ilustra essa notícia foi obtido pelo repórter Hudson Correa. Exibe cenas captadas pelas câmeras de segurança de uma agência do Banco do Brasil. Fica em Nova Friburgo, cidade de 180 mil habitantes assentada na Região Serrana do Rio de Janeiro. As imagens são de 2011.

Na madrugada de 12 de janeiro daquele ano, um temporal caiu sobre o município. Produziu o deslizamento de encostas. Inundou casas, lojas, escolas e hospitais. Arrastou pessoas. Levou à cova pelo menos 428 cadáveres. Nas pegadas da devastação, o governo federal mandou à prefeitura de Nova Friburgo R$ 10 milhões.

Investigações conduzidas pelo Ministério Público Federal revelaram que foram desvidos cerca de R$ 3 milhões dessa verba que deveria servir para abrandar o sofrimento das vítimas. Um pedaço do dinheiro –coisa de R$ 400 mil— foi afanado na boca do caixa do Banco do Brasil, sob as lentes do sistema de vigilância.

O caso de Nova Friburgo já frequentou as manchetes. Mas as imagens da fita da agência bancária ainda eram inéditas. Constam de denúncia criminal protocolada na Justiça Federal do Rio de Janeiro no mês passado, dezembro de 2012. Esmiuçada na edição deste final de semana da revista Época, a peça incrimina 20 pessoas.

Entre os encrencados está o então prefeito de Nova Friburgo, Demerval Barboza. Eleito pelo PMDB, ele hoje é filiado ao nanico PTdoB. Com denúncias na altura do nariz, Demerval foi afastado da prefeitura no final de 2011 por decisão do juiz federal Eduardo Francisco de Souza. Brigou na Justiça para retornar ao cargo. Não conseguiu reaver a cadeira. Mas recebeu salários até as eleições municipais do ano passado, quando as urnas finalmente sepultaram-lhe o mandato.

Os R$ 400 mil que escorreram pelos guichês do Banco do Brasil destinavam-se a custear o combate a uma das consequências das enchentes: um surto de leptospirose, doença provocada pela urina dos ratos que empesteavam Nova Friburgo. A prefeitura contratou uma dedetizadora, a empresa Cheinara Dedetilar Imunização.

Em vez de realizar os pagamentos por meio de transferências bancárias eletrônicas, como é usual no serviço público, o prefeito Demerval preferiu emitir cheques. Os saques em dinheiro vivo são mais difíceis de rastrear. Os ratos continuaram perambulando pelas ruas, residências, escolas e hospitais de Nova Friburgo. Porém…

As câmeras da agência bancária funcionaram como uma ratoeira insuspeitada. Pilhados nas imagens que agora recheiam o processo criminal, os roedores de verbas públicas foram devidamente identificados. Estrelam as filmagens quatro personagens: Adão de Paula e seu filho Alan Cardeck Miranda de Paula, respectivamente dono e gerente da dedetizadora Cheinara; Allan Ferreira, amigo do prefeito e o filho dele, Iran Ferreira, gerente de gabinete da prefeitura.

Realizaram três saques. A grana começou a escoar dois meses depois da assinatura do contrato da prefeitura com a Cheinara, numa fase em que Nova Friburgo ainda respirava uma atmosfera de luto. Em 18 de março de 2011, sacaram-se R$ 172,1 mil. Em 22 de junho, mais 207 mil. No mês anterior, maio, deu-se o menor saque: R$ 29 mil.

Todos os filmados foram inquiridos no curso do inquérito judicial. Negaram os malfeitos servindo-se de explicações inusitadas. Por exemplo: Adão de Paula, o dono da firma de dedetização, alegou que resolveu sacar a dinheirama em espécie por receio de uma iminente greve de bancários.

Questionado sobre a destinação das verbas, Adão não soube dizer. Declarou que, por ser "homem vindo da roça", não entende das finanças do seu negócio. Posterioemente, por meio do advogado, sustentou que os serviços foram realizados e nada foi desviado.

Signatário da denúncia, Rogério Soares do Nascimento, procurador regional da República lotado no Rio, afirma que as gravações do banco falam por si: "As imagens são muito eloquentes. Era muito dinheiro, um monte, que botavam numa espécie de saco sem parar. É algo muito chocante, se pensarmos nas carências do país e no que a população de Nova Friburgo sofria naquele momento."

Numa hora em que as chuvas voltam a cair sobre o Estado do Rio, o caso de 2011 serve como uma espécie de sinal de alerta. De novo: esqueça o 'pibinho' e a inflação. Concentre-se na liquidez dos negócios trançados sob a emergência das águas. Essas transações evocam personagens nietzschianos, para os quais a moral convencional é mero desafio às suas convicções de superioridade. Uma vilania assim, desempenhada com tal desassombro, é mais do que mera crueldade gratuita. A coisa tem um quê de escárnio.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.