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Josias de Souza

Cheque que Valério diz ter custeado gastos de Lula traz no verso número de conta inexistente

Josias de Souza

25/04/2013 06h10

Freud à PF: R$ 98,5 mil recebidos de Valério pagaram serviços prestados a Lula na campanha

Depois da reinquirição de Marcos Valério na Polícia Federal, há dois dias, informou-se que será protocolado na Justiça Federal, em Belo Horizonte, um pedido de quebra do sigilo bancário de Freud Godoy. Deseja-se saber o destino dos R$ 98,5 mil que Valério repassou ao ex-segurança e ex-assessor especial de Lula. A providência flerta com o inócuo.

O dinheiro que Valério agora afirma ter custeado "despesas pessoais" de Lula já foi objeto da curiosidade da PF no inquérito do mensalão –aquele que serviu de base para a denúncia que resultou na condenação de 25 pessoas no STF. O cheque repassado a Freud é datado de 21 de janeiro de 2003. Emitiu-o a SMP&B Comunicação Ltda., agência que tinha o operador do mensalão como sócio.

O documento traz no verso o número de uma conta corrente na qual supostamente a verba teria sido depositada. Ao tentar refazer o caminho do dinheiro, a Polícia Federal descobriu que a conta anotada no cheque não existe. De duas, uma: ou o caixa que recebera o depósito equivocou-se ou o erro foi proposital. Os investigadores requereram, em 2006, a quebra dos sigilos bancários de Freud e da empresa beneficiária do cheque.

Chama-se Caso Comércio e Serviço Ltda.. Está sediada em São Paulo. Foi registrada em nome de Freud, que tinha a mulher, Simone Messeguer Godoy, como sócia minoritária. A quebra foi autorizada. Porém, ao apalpar os dados bancários de Freud e da firma, peritos do Instituto Nacional de Criminalística, órgão da PF, não encontraram nenhum vestígio dos R$ 98,5 mil.

Por meio da Procuradoria-Geral da República, os responsáveis pelo inquérito dirigiram-se ao relator do mensalão no STF, Joaquim Barbosa. Pediram-lhe que autorizasse a realização de uma diligência na instituição financeira. Coisa abrangente. Barbosa, hoje presidente do STF, achou o pedido inespecífico demais. Indeferiu. E a PF viu frustar-se sua derradeira tentativa de rastrear o cheque.

Intimado a depor, Freud Godoy livrou a PF do zero a zero. Ele confessou ter recebido o cheque. Disse que se referia ao pagamento de serviços que sua empresa, a Caso, prestara durante a campanha presidencial de Lula em 2002 –inclusive na fase de transição que precedeu a posse. Que serviços? "Segurança, alimentação, transporte e hospedagem de equipes de apoio" a Lula, disse Freud.

Por que só recebeu em janeiro de 2003, quando Lula já despachava no Planalto? Os pagamentos haviam atrasado. Segundo Freud, a divida somava R$ 115 mil. Embora fosse íntimo de Lula, que conhecera na década de 1980, ele disse à PF que foi fazer a cobrança no comitê eleitoral do PT. Falou com quem? Não quis dizer. Contou apenas que lhe foi passado o número do telefone da empresa que faria o pagamento. Ao ligar, soube que se tratava da SMP&B.

Na versão contada à PF, Freud nunca manteve contato com Valério. Os funcionários da agência de comunicação orientaram-no a enviar uma nota fiscal pelo Correio. Foi pela mesma via postal que Freud teria recebido o cheque de R$ 98,5 mil, já com o desconto dos tributos. E quanto ao contrato com o PT? Não há contrato, informou Freud. Tampouco foram escrituradas as despesas. No popular: caixa dois.

Chamado a se explicar nessa época, Valério recusou-se a colaborar. Perguntaram-lhe especificamente sobre a razão do repasse de dinheiro a Freud. E ele preferiu invocar o seu direito constitucional de permanecer em silêncio. Só em setembro do ano passado, quando já ia avançado o julgamento do mensalão, Valério animou-se a abrir o bico.

Em depoimento à Procuradoria disse que Lula autorizou os empréstimos de fancaria que davam aparência legal ao esquema, e beneficiou-se pessoalmente de parte das verbas espúrias. Reinquirido pela PF na última terça-feira (23), ele manteve e esmiuçou as acusações. É nesse ponto que se encontra a encrenca.

Se os novos investigadores quiserem insistir na tática da quebra de sigilo bancário, podem requerer a abertura da conta de Simone Godoy. Mulher e sócia de Freud, ela não teve os dados bancários perscrutados. Talvez já seja tarde, contudo. Pelas normas do Banco Central, as casas bancárias não são obrigadas a conservar os dados de seus clientes senão por cinco anos.

A despeito da confissão de Freud Godoy, a Procuradoria-Geral da República preferiu não incluir Lula no rol de denunciados do mensalão. Agora, além da admissão do ex-faz-tudo de Lula, o Ministério Público Federal dispõe dos depoimentos em que Valério fala que a verba espúria bancou despesas de Lula.

A credibilidade de Valério, hoje um pluricondenado, não é das mais altas. Mas seus depoimentos serviram de prova para a condenação de vários encrencados do mensalão, inclusive José Dirceu. De resto, o relator Joaquim Barbosa fez prevalecer no Supremo o entendimento segundo o qual a destinação da verba é irrelevante. Para efeitos de condenação, importa saber se a origem do dinheiro é criminosa.

Assim, o Ministério Público está diante do seguinte dilema: duas pessoas, Valério e Freud, declaram que um pedaço do caixa ilegal do mensalão –pelo menos R$ 98 mil— foi usado para pagar gastos de Lula. "Despesas pessoais", declara Valério. Gastos não-contabilizados de campanha, sustenta Freud. Numa ou noutra hipótese, há a incidência de crime.

Na única declaração que fez sobre as afirmações de Valério, Lula disse que são "mentirosas" as acusações. Se for chamado a depor, o ex-presidente sempre poderá dizer que "não sabia" que Freud apalpara um cheque do talonário de Valério. Mas lá estão, impressas no inquérito, as palavras do ex-faz-tudo. Godoy diz que serviu a Lula durante a campanha. Reconhece que recebeu o cheque de Valério. Admite que não dispõe de contrato. Confessa que não escriturou as despesas. Como ignorar tudo isso?, eis a pergunta que a Procuradoria terá de responder nas próximas semanas.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.