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Josias de Souza

Dilma faz do fundo do poço habitat de senadores

Josias de Souza

16/05/2013 16h38

Há anos o Senado caminha em direção a um metafórico fundo do poço. Os presidentes precários, a violação do painel, as crises éticas, os privilégios, as mordomias, o empreguismo… Os flagelos oferecem uma vaga visão do que vem a ser uma instituição irremediavelmente conspurcada. Porém…

O país prefere não pensar nos efeitos deletérios do impensável. O brasileiro pacato, que financia o funcionamento do inadmissível, faz cara de nojo sem esboçar reação. O fundo do poço é encarado como algo parecido com o inferno. Um lugar que todos sabem insuportável. Mas que ninguém deseja conhecer em detalhes.

A plateia se apega ao fato de que as frágeis instituições brasileiras já roçaram várias vezes o fundo do poço. E nem por isso o brasileiro médio deixou de tomar o café da manhã, almoçar, jantar e assistir à novela antes de se enfiar sob os lençóis. Assim, beneficiado pela generosidade do brasileiro, o Senado vai adiando, brasileiramente, o seu encontro com o fundo do poço definitivo.

Quando se imagina que o fundo foi tocado, um novo inaceitável irrompe em cena para informar à nação que o percurso rumo às profundezas tem múltiplas e intermináveis escalas. Ao fundo do poço do Orçamento dos anões seguiu-se o fundo do poço de Jáder 'Sudam' Barbalho, superado pelo fundo do poço da violação da dupla ACM-Arruda aos votos secretos do painel, suplantado pelo fundo do poço dos atos secretos de Sarney, excedido pelo fundo do poço da suspeita de que um lobista de empreiteira bancava despesas de Renan, suplantado pelo fundo do poço dos bois voadores do mesmo Renan, revogado pelo fundo do poço da reeleição de um Renan réu no STF…

Na semana passada, o Senado conheceu outro fundo do poço. Em descumprimento à regra segundo a qual nenhuma medida provisória seria apreciada com menos de 48 horas de tramitação, foi ao plenário uma MP recebida da Câmara 24 horas antes.  A peça tratava de referendar a decisão de Dilma Rousseff que assegurou renda mínima mensal de R$ 70 a todas as famílias beneficiárias do programa Bolsa Família.

Houve um rápido debate, eternizado nas notas taquigráficas da sessão. Líder do DEM, José Agripino Maia informa que a medida provisória seria votada "com a aquiescência do PSDB, do Democratas e da minoria, numa homenagem aos mais pobres." Mas o senador faz uma advertência: "Que isso não se repita!".

Líder do PMDB, Eunício Oliveira concorda: "Esse acordo não abre o precedente, como afirmou o senador José Agripino." Dirigindo-se a Renan Calheiros, que presidia a sessão, Eunício prossegue: "Quero louvar V.Exa. pela pressa de ter lido esta medida provisória ontem à noite, porque, como disse o senador Agripino, ela é matéria extremamente meritória… Agradeço aos demais líderes pela compreensão de votarmos essa matéria, repito, sem abrir o precedente."

Líder do PSDB, Aloysio Nunes Ferreira vai ao microfone para ecoar Agripino. Menciona a norma das 48 horas e sustenta: ela "está sendo reafirmada agora, nessa votação, na medida em que nós todos insistimos para que ela não constitua um precedente." E reitera o relevo da regra: "lida a medida provisória, nós realizaremos duas sessões deliberativas até que ela seja levada à votação no plenário."

Líder do governo, Eduardo Braga repete Eunício, o mandachuva do PMDB: "Queremos reconhecer esse compromisso assumido com todas as lideranças para que não se estabeleça precedente em torno desse acordo, para que possamos votar medidas provisórias extremamente importantes."

Nesta quinta-feira (16), o fundo do poço da medida provisória digerida em 24 horas foi suplantado pelo fundo do poço da medida provisória engolida às cegas. Aprovada na Câmara às 9h43 –após dois dias, duas noites e duas madrugadas de caóticos debates— a MP dos Portos caiu no colo dos habitantes do poço num intervalo de quatro horas.

Chama-se Eduardo Braga o relator da MP dos portos. O mesmo líder de Dilma que, há oito dias, jurava na tribuna que a MP de 24 horas não abriria "precedente" para novos fundos do poço. Agora, Renan Calheiros assume novo compromisso: "Essa será a última vez", diz o suposto presidente do Senado, reconhecendo que a MP dos portos submete o Senado a uma "aberração".

Ninguém disse ainda, talvez por pena. Mas, ao aceitar a votação às escuras de uma "aberração" apelidada na Câmara de 'MP dos Porcos', o Senado assume em definitivo sua posição preferencial –de cócoras. Sob protestos de uma minoria irrelevante, o Senado aceita gostosamente o papel de sucursal do Palácio do Planalto. A causa da modernização dos portos não merecia uma MP analisada assim, em cima do joelho.

A esperança de que o fundo do poço possa ser convenientemente adiado ao infinito faz do Senado o que ele é hoje, uma instituição à beira do abismo eterno. Nesse interminável adiamento do fundo do poço apocalíptico, o brasileiro habituou-se a aspirar o irrespirável. É improvável que o novo "absurdo" empurre o Senado, finalmente, para o fundo do abismo. De concreto, por ora, apenas duas certezas: 1) os senadores cavam o buraco. 2) o eleitor, dono da enxada, finge-se de morto.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.