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Josias de Souza

Irracional é protagonista na revolta dos R$ 0,20

Josias de Souza

14/06/2013 08h20

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Nina Cappello, estudante de direito, tida como uma das "organizadoras" do Movimento Passe Livre já havia lavado as mãos há três dias: "A gente não tem controle. Ficou claro que a manifestação se transformou numa revolta popular na cidade contra o aumento da tarifa." Na noite passada, Lídio Costa Júnior, major da Polícia Militar, enxaguou as mãos "Não nos responsabilizamos mais pelo que vai acontecer".

Entre a falta de controle da turba e a ausência de responsabilidade da farda, o irracional tornou-se o ator principal do espetáculo transmitido ao vivo das ruas centrais de São Paulo para os lares de todo país. Em meio à bruma do spray de pimenta, a euforia do quebra-quebra misturava-se à excitação dos tiros de borracha. Os dois lados pareciam ter ciência de que preparavam um noticiário fantástico.

Era como se ditassem para o William Bonner um par de destaques para a escalada de manchetes do Jornal Nacional. Era como se redigissem a capa dos jornais da manhã seguinte. Rodavam uma espécie de filme de ação sem autor nem diretor. Depredavam e lançavam bombas de gás porque seguiam orientações e cumpriam ordens. Orientações do Tinhoso, ordens do Todo-Poderoso. E vice-versa.

Exceto pelos sublevados que não têm cara de quem anda de ônibus, manifestantes e soldados formam uma irmandade feita da mesma matéria prima. Não têm razão para sentir raiva um do outro. Provavelmente moram nas mesmas submoradias, comem o mesmo pão que Asmodeu amassou.

Suprema ironia: quando o prefeito era de outro partido, o PT estimulava o Movimento Passe Livre. Agora, o prefeito é petista. Cúmplice nos reajustes, faz coro com o governador tucano: não há como cancelar. E a turma que dirige o próprio carro se horroriza com a revolta que um reajuste de R$ 0,20 pode causar. Que horror, que horror!

Por sorte, a rebelião teve um desses momentos que o doutor Luís Roberto Barroso, novo ministro do STF, chamaria de ponto fora da curva. Protagonizou-o o policial militar Wanderlei Paulo Vignoli. Montava guarda no prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo quando notou que um sujeito pichava o bem público. Tentou impedir. Súbito, viu-se cercado por duas dezenas de manifestantes.

Apedrejado na testa, sangue a escorrer pelo rosto, recolheu os ruídos que soavam ao redor: "Lincha, lincha. Tira a arma dele. Mata!" Sacou o revólver que trazia na cintura. Estava carregado com balas letais, não de borracha. Por que não atirou? "Somos treinados para manter o autocontrole, só atirar no limite. Entendi que, mesmo tendo sido atingido com pedradas, não era o limite para usar arma de fogo."

Vignoli anda de ônibus e de metrô. Quando não está fardado, desembolsa a tarifa que passou de R$ 3,00 para R$ 3,20. Informado de que os rebeldes pedem tarifa zero, o policial fez cara de riso. "Eu também gostaria, né? Mas acho que nem os países de Primeiro Mundo chegaram a esse patamar."

Segurança do Tribunal de Justiça, Vignoli conta que o prédio acaba de passar por uma restauração milionária. "Eles têm que entender que esse dinheiro [para apagar a pichação] vai sair do bolso da população." A realidade brasileira por vezes fica inacreditável. Mas quando se imagina que tudo está perdido, o sujeito que segura o revólver demonstra que é possível ter razão disparando apenas argumentos.

 

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.