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Josias de Souza

Em vez de sepultar Donadon, Câmara se mata

Josias de Souza

28/08/2013 23h50

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— Na hora de vir pra cá, eu fui tomar banho. E faltou água na torneira. Lá não tem chuveiro. É uma torneira. Água fria. E justamente hoje faltou água.

Plenário da Câmara, noite do dia 28 de agosto de 2013. O clima era de velório. Na tribuna, Natan Donadon, um cadáver político, pronunciava suas penúltimas palavras.

— Eu tava todo ensaboado. E acabou a água do presídio. Eu tive que recorrer a um preso, do lado da minha cela. Ele tinha umas garrafinhas de água. Pedi a ele. E acabei de tomar banho com essas poucas garrafinhas que ele me emprestou.

Em noite constrangedoramente deplorável, o plenário da Câmara perdeu a tradicional aparência de feira livre. Hipnotizados, os presentes dedicavam 100% de sua atenção a Donadon. Pela primeira vez na história do Legislativo, um presidiário ocupava a tribuna.

De todos os persistentes terrores brasileiros, o pior é o terror do sistema prisional. O flagelo é a síntese do que o pedaço bem nascido do Brasil pensa dos sem-berço. As cadeias são infernais porque elas só são infernais para bandidos pretos e pobres. Não é lugar para brasileiros acima de um certo nível de renda e de poder.

De repetente, o STF condenou Donadon a mais de 13 anos de cana dura. E ele foi transferido do mundo das facilidades e dos privilégios para a Penitenciária da Papuda, em Brasília. "Os companheiros de prisão chamam de 'P-Zero', prisão zero, porque não tem nada", disse, ao relatar seus primeiros dois meses de inferno.

— Vim algemado de lá pra cá. Nunca tinha entrado num camburão na minha vida. Nunca pensei que isso fosse acontecer. Vim algemado pelas mãos, atrás [didático, o orador leva as mãos às costas, juntando os punhos]. Eu tenho uma certa fobia. Pedi aos agentes pra me trazer na frente. Mas eles disseram que não poderia. Deus me acompanhou. Me deu força, me deu resignação.

O plenário estava reunido para parafusar a tampa do caixão que o Supremo fechara, decretando a cassação do mandato do preso. E Donadon, munido de autorização judicial, revirava no caixão. Nas entrelinhas do seu discurso, o condenado passava aos seus pares, por assim dizer, um recado. Era como se dissesse: "Eu sou vocês amanhã." Soou dramático.

— Esses 60 dias que eu estou preso lá, tenho sofrido muito. Tenho sofrido muuiiiito. É desumano o que um prisioneiro passa. A minha família tem sofrido muito. Por favor, me absolvam. Essa Casa é independente!

Sentenciado em última instância, sem possibilidade de recorrer, Donadon revelou-se um presidiário de mostruário. Como todo detento que se preza, declarou-se "inocente". Terminado o discurso, abriu-se o painel de votação. E o plenário começou a esvaziar.

Muitos deputados, cumprida a obrigação de votar, foram embora. Outros tantos bateram em retirada sem votar. Dos 513 deputados, 470 registraram presença ao longo do dia. Desse total, apenas 405 levaram o voto ao plenário. Como que farejando o cheiro de queimado, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), presidente da Câmara, esticou a sessão a mais não poder. Queria que todos votassem.

Iniciada às 19h, a sessão foi encerrada às 23h04. Para que o mandato do condenado Donadon fosse passado na lâmina, eram necessários pelo menos 257 votos. "A Câmara não vai cometer hara-kiri político", disse um otimista Chico Alencar (PSOL-RJ), antes que o resultado fosse estampado no painel eletrônico: "sim", 233; "não", 131. "Abstenção", 41. A Câmara, que sempre teve um comportamento de alto risco, cometeu suicídio. Tornou-se uma instituição-zumbi. Numa tentativa de reduzir os danos, Henrique Alves anunciou que Donadon não terá de volta o salário e demais benefícios. Será convocado o suplente.

Sacramentado o vexame, o ainda deputado federal Natan Donadon levantou as mãos para o alto. Atrás da última fileira de poltronas, festejou a morte do plenário como uma vitória do corporativismo. Depois, foi reconduzido ao camburão. Algemado, voltou para o xilindró. Antes, foi ao microfone de apartes para cumprir um compromisso que assumira com seus companheiros de cárcere.

— Eles falaram pra mim assim: 'nao esqueça de falar da nossa alimentação. É muito ruim a alimentação do presídio. Não é de boa qualidade. Tenho a síndrome do intestine irritado. Associado ao estresse, tenho passado muito dificuldade lá. Tá dado o recado. Eles pediram pra eu falar. É preciso melhorar a comida dos presidiários da Papuda.

O Brasil dispõe de mais uma jabuticaba: um deputado federal corrupto e presidiário. É coisa única no mundo. "Graças a Deus, a Câmara está fazendo justiça", disse a anomalia, a caminho do camburão.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.