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Josias de Souza

No Senado, privilégio é uma espécie de religião

Josias de Souza

26/09/2013 17h51

Estanha instituição o Senado. A Casa convive com ilegalidades sem que ninguém viole as leis. Até os ácaros que se escondem sob o tapete azul do plenário sabem que a folha do Senado é abrigo de supersalários, centenas deles acima do pé direito constitucional de R$ 28 mil. De repente, o TCU, apinhado de ex-parlamentares, grita "alto lá". E a imoralidade ganha as manchetes como um fenômeno órfão.

"Isso vinha já há muito tempo ocorrendo", disse o ex-deputado federal Augusto Nardes, presidente do TCU. Órgão auxiliar do Congresso, o tribunal de contas fazia de conta que era cego.  De olhos bem abertos, Nardes esteve com Renan Calheiros, o mandachuva do Senado. Entregou-lhe cópia da auditoria que determinou a interrupção do flagelo e a devolução das verbas desembolsadas ilegalmente.

Os servidores terão de ressarcir o erário, afirmou Renan. "Não é questão de coragem, é de dever. É cumprir a Constituição com a qual todos nós nos comprometemos.", ele acrescentou. Juntos, Renan e seu fiel aliado José Sarney passaram pela presidência do Senado seis vezes. E jamais havia ocorrido à dupla "cumprir a Constituição".

Em nota, o Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo (Sindilegis) anunciou que vai recorrer contra a decisão do TCU. Os servidores receberam o salário ilegal "de boa fé", alega o sindicato. "Se há algum erro, ele foi cometido exclusivamente pela administração pública, não tendo os servidores poder de gerência sobre a situação."

Como se vê, o privilégio, uma vez institucionalizado, vira uma espécie de religião. Catedral das vantagens e das mumunhas, o Senado tornou-se uma Casa imaculada, 100% feita de santos. Injetando-se a Câmara no caldeirão de milagres, o desvio anual proporcionado pelos supersalários vai à casa dos R$ 700 milhões.

Em decisão anterior, o TCU já havia determinado à Câmara que se dignasse a parar de pagar vencimentos acima do teto legal a 1.111 servidores. Nada dissera, porém, sobre o já desembolsado. No caso do Senado, o acórdão inclui uma ordem de devolução das cifras malversadas nos últimos cinco anos. Coisa acima dos R$ 300 milhões.

Se a ordem de Renan prevalecer sobre o recurso judicial do sindicato, o ressarcimento será feito em conta-gotas. Os 464 servidores que receberam vencimentos por cima do telhado terão descontados mensalmente 10% dos seus supervencimentos. Quer dizer: correndo tudo bem, o mal será corrigido quando Deus oferecer aos ateus uma prova de que existe.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.