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Josias de Souza

Renan ficou sem comida em casa. Ôôôôôô, dó!

Josias de Souza

17/10/2013 21h16

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Acabou a comida na residência oficial do presidente do Senado. A despensa e a geladeira esvaziaram depois que foi cancelada, há 15 dias, uma licitação superfaturada para a aquisição de mantimentos. A lista de compras incluía 25 quilos de camarão vermelho grande, 20 quilos de frutos do mar e 1,7 tonelada de 33 tipos de carnes. Coisa de R$ 98 mil.

A repórter Maria Lima conta que Renan Calheiros e seus familiares viram-se compelidos a matar a fome fora de casa. Ouvida, a assessoria da presidência do Senado informou: "Renan está almoçando no restaurante do Senado, pagando do próprio bolso." Assombro! "Sua esposa também está comendo fora." Espanto!! "A licitação vai ser redimensionada para eliminar itens superfaturados e supérfluos." Estupefação!!!

"Também vai haver corte na quantidade de camarão e outros itens." Hã, hã… "A ideia é cortar mais da metade do custo antes previsto e adequar as quantidades apenas para o presidente e sua esposa." Ah, tá! "Os servidores não mais farão suas refeições no local, porque recebem ticket alimentação." Hummm…

Solidário, o estômago decidiu divulgar uma carta aberta ao presidente do Senado. O texto vai abaixo:

Caríssimo senador,

O senhor não me conhece. Permita que me apresente. Moro onde olho nenhum me alcança, no ermo das entranhas. Sou ferida exposta que não se vê. Sou espaço baldio entre o esôfago e o duodeno.
Trago das origens uma certa vocação para a tragédia. Não deve ser por outra razão que venho do grego: 'stómachos'.

Se pudesse dar entrevista, resumiria assim o oco de minha existência: 'É dura a vida de víscera.'
Às vezes, presidente, invejo o coração que, quando sofre, é de amor. Eu jamais tive tempo para sentimentos abstratos. Perdoe-me o pragmatismo estomacal. Mas só tenho apreço pelo concreto: o feijão, o arroz, a carne…

Meu projeto de vida sempre foi arranjar comida. 
Danço no ritmo da emergência.
Meu mundo cabe no intervalo entre uma refeição e outra. Meu relógio, caprichoso, só tem tempo para certas horas: a hora do café, a hora do almoço, a hora do jantar… Eu entendo o seu drama, senador.

Sem comida, meu relógio ficou louco. Passou a anunciar a chegada de cada novo segundo aos gritos. 
Nunca tive grandes ambições. Não quero glória. Tampouco desejo um mandato de senador. Sonho com a solidariedade de uma cesta básica, a compaixão de um grão escorregando faringe abaixo.

Ardem-me as paredes, bombardeadas por jatos de suco gástrico. Mas já não sofro, senador. Sem alimento, encontrei a paz na melancolia da fome. A privação levou-me à ante-sala de outra esfera.
 Consola-me, senador, a certeza de que sua rotina alimentar logo estará normalizada. Quanto a mim…

Temente a Deus, sei que Ele há de acomodar no meu céu uma cozinha como a da residência oficial da presidência do Senado, tão farta que me propicie uma fome de senador, dessas que a gente resolve simplesmente abrindo a geladeira. Força, Excelência!"

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.