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Josias de Souza

Condenados responsáveis por desvios na USP

Josias de Souza

18/10/2013 17h22

A Justiça Federal condenou pelos crimes de peculado e uso de documentos falsos o cirurgião-dentista Aguinaldo Campos Júnior. Ex-professor da USP, ele praticou os delitos na década de 90, quando coordenava o Napio, Núcleo de Apoio à Pesquisa de Implantes Odontológicos da Faculdade de Odontologia da USP, em Bauru.

Aguinaldo foi sentenciado a 10 anos e 6 meses de prisão, em regime inicialmente fechado, por desviar verbas de pesquisa da universidade. A decisão judicial é de 19 de setembro. Mas só nesta sexta-feira (18) foi noticiada no site da Procuradoria da República.

Junto com Aguinaldo, foram condenadas outras três pessoas: Luiz Fernando Pegoraro, ex-tesoureiro da Funbeo, Fundação Bauruense de Estudos Odontológicos, uma entidade que firmou convênio com o Napio; Liane Cassol Aragones e seu marido Aguedo Aragones, sócios de Aguinaldo em empresas que supostamente forneciam materiais ao Napio.

Denunciados pelo procurador da República Pedro Antônio de Oliveira Machado como participantes de um esquema de desvio de verbas destinadas à pesquisa acadêmica, Luiz Fernando, Aguedo e Liana foram enquadrados nos crimes de peculato e falsidade ideológica. Pegaram 7 anos e 2 meses de cadeia, em regime inicialmente semiaberto.

Foi há 14 anos que o país ficou sabendo que um núcleo de pesquisas da mais importante universidade pública brasileira havia se transformado em caso de polícia. Assinada pelo signatário do blog, a notícia sobre a encrenca foi veiculada pela Folha em sua edição de 4 outubro de 1999.

Só agora a encrenca começa a se transformar em sentenças. Considerando-se a infinidade de recursos previstos na legislação brasileira, pode-se intuir que o castigo, se ocorrer, só virá depois de decorridos mais alguns anos. Vai abaixo, por curiosidade histórica, a reportagem que deu origem ao processo.

Sindicância da USP apura desvio de verba em núcleo de Bauru

Josias de Souza

Imagine um fantasma com conta no banco e capaz de administrar um patrimônio milionário que inclui um centro cirúrgico, um laboratório de prótese, seis consultórios dentários e até um estúdio de TV. O fantasma existe. Ele assombra os subterrâneos da USP há mais de dois anos. E está prestes a virar um caso de polícia.

Está-se falando do Núcleo de Apoio a Pesquisas de Implante Odontológico. No meio acadêmico, é mais conhecido pela sigla Napio. Ele nasceu em 1991. A idéia era que funcionasse como núcleo temporário de pesquisa. Em 30 de julho de 1997, depois de ter movimentado pelo menos US$ 2 milhões em verbas públicas, o Napio foi desativado pela USP.
Mas a morte do núcleo de pesquisa ocorreu apenas no papel.

Na prática, ele continua existindo. Funciona até hoje, em ritmo de empresa privada, na Faculdade de Odontologia de Bauru, uma das unidades que a USP mantém no interior paulista. Sua contabilidade é invisível.
O Napio virou uma caixa preta que, por ora, nem mesmo a direção da USP conseguiu devassar inteiramente. Pior: a universidade não consegue deter o fantasma.

Embora seja uma ficção jurídica, o Napio segue administrando uma superestrutura munida de equipamentos que vão de computadores a geladeiras, de tornos eletrônicos de alta precisão a escrivaninhas.
Por trás do fantasma do Napio está um professor de carne e osso.

Chama-se Aguinaldo Campos Júnior. Está lotado na Faculdade de Odontologia de Bauru. É ele quem assina os cheques da conta bancária que o Napio mantém no Banco do Brasil. Só ele.

A conta deveria servir apenas para movimentar dinheiro que o Napio recebeu por meio de um convênio com a Fundação Banco do Brasil (R$ 389.459,22). Hoje, porém, ela é usada para recebimentos e despesas correntes do núcleo de pesquisas.

O Napio comercializa implantes, vende material didático para escolas de odontologia e presta serviços remunerados pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Ao longo de toda a sua existência, incluindo a fase de hectoplasma, o Napio foi abastecido também com verbas da própria USP, do CNPq, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, da Finep, do Fundo Nacional de Saúde, da Capes e da Fapesp.

Documentos oficiais obtidos pela Folha indicam que podem ter passado pelos cofres do núcleo de pesquisa mais de US$ 2 milhões. Em relatório encaminhado em março de 1996 à Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, o professor Aguinaldo dá pistas sobre as finanças do Napio. Não há nada além de pistas.

O texto mistura cifras em dólares e em reais. Diz, por exemplo, que, nos primeiros cinco anos de existência, o Napio movimentou US$ 1,7 milhão em verbas de pesquisas.
Menciona outros R$ 250 mil vindos do SUS. E informa que, "com a venda de implantes e sistemas", o Napio "tem uma perspectiva real de obtenção de recursos financeiros regulares da ordem de R$ 55 mil mensais."

Em documento mais antigo, de 24 de maio de 1993, o professor João Palermo Neto, à época membro de comissão constituída pela reitoria da USP para analisar as atividades de núcleos de pesquisa, afirmou: "(…) a Pró-Reitoria de Pesquisa, através de um projeto especial, liberou US$ 1.550.000,00 para que o Napio adquirisse equipamentos para corte histológico de implantes".

Ninguém sabe ao certo quanto passou pelo Napio. O destino de vários equipamentos do núcleo também é um mistério por desvendar. Desde a extinção do Napio, há mais de dois anos, a universidade tenta catalogar os seus bens, para transferi-los à Faculdade de Odontologia.

Em junho de 98, um ano após a extinção, instado a fornecer uma relação de bens adquiridos com as verbas de pesquisa, o professor Aguinaldo respondeu com um ofício de um parágrafo: "(…) os bens pertencentes ao núcleo (…) são uma impressora (…) e um microcomputador (…), que não se encontram mais em condições de uso".

Instado uma vez mais, o professor saiu-se com uma lista mais farta, com mais de 140 itens. Uma terceira lista, mais pobre que a anterior (cerca de 100 itens) surgiria em maio de 1999. Com dados tão díspares, o patrimônio do Napio acabou gerando uma investigação sigilosa, tocada por comissão de sindicância que trabalha em sigilo na USP.

Em depoimentos à comissão, ex-funcionários do Napio informaram que alguns computadores foram parar em um provedor de Internet de Bauru chamado Thecnoland. A USP pensa em pedir à Justiça que autorize uma operação de busca e apreensão na empresa, único modo de confirmar a veracidade da denúncia.

Descobriu-se que um torno de duas toneladas, suíço e de alta precisão, usado na fabricação de implantes, foi parar em uma empresa de Blumenau (SC). Chama-se Ensimec. A reportagem da Folha esteve na empresa. Um de seus proprietários negou duas vezes que o equipamento estivesse sob sua guarda. Só no dia seguinte concordou em mostrar a máquina.

Em abril de 1995, Aguinaldo virou, ele próprio, empresário. Tornou-se sócio da empresa Kunzel, estabelecida no ramo de comércio de materiais odontológicos. Em março de 1996, o professor encaminhou à direção da USP documento em que manifestava um súbito desinteresse pela manutenção do Napio e pedia mesmo a sua desativação.

Os negócios privados de Aguinaldo caminhavam bem. Em julho de 1996, sua empresa mudou-se para novas instalações e expandiu o leque de atividades. De casa de comércio, passou à condição de indústria. Em julho de 1997, mesmo mês em que a USP desativou oficialmente o Napio, o capital da Kunzel saltou de modestos R$ 3 mil para R$ 80 mil.

Mal o Napio foi extinto, a firma de Aguinaldo se apropriou da marca. O nome "Napio" pertence agora à Kunzel. A empresa registrou a marca no Instituto Nacional de Propriedade Industrial.
Uma Kombi da Kunzel, placa CQK 2704, circula pelas ruas de Bauru com a seguinte inscrição: "Napio, Sistema de Implantes." Na USP, chegou-se a suspeitar que o carro fosse da universidade.

A Folha obteve documentos que revelam outro tipo de relação promíscua da Kunzel com a USP. Além de tomar para si a marca Napio, a empresa vende materiais para a universidade.
De um lado do balcão, na pele de empresário, Aguinaldo fornece a mercadoria. Do outro lado, na posição de professor, Aguinaldo assina o cheque. O dinheiro sai da conta do mesmo Napio que, extinto no papel, insiste em permanecer no mundo dos vivos.

Em agosto de 98, sem licitação, o empresário Aguinaldo (Kunzel) vendeu ao professor Aguinaldo (Projeto Napio) 1.340 embalagens para próteses, ao preço unitário de R$ 10, totalizando R$ 13.400. No mês seguinte, em 30 de setembro, vendeu outras 589 embalagens, novamente sem licitação. Desta vez, a unidade saiu por R$ 25, totalizando R$ 14.714,35.

Na Kunzel, Aguinaldo tem como sócio o dentista Águedo Aragones. Na USP, administra o Napio praticamente sozinho. Se seguisse as normas da universidade, o professor deveria dividir as responsabilidades com um conselho deliberativo. Mas o conselho existe apenas no papel.
Em cartas dirigidas à direção da Faculdade de Odontologia de Bauru, sete professores que deveriam integrar o tal conselho pediram desligamento do Napio.

Em 20 de junho de 98, o professor Accácio Lins do Valle anotou: "Sabedor de que sou, em caráter plenamente decorativo, membro de um conselho deliberativo, faço saber que em nenhum momento fui convocado nem participei do referido conselho (…)".

O professor Rumio Taga escreveu, em carta de 25 de junho de 1998: "(…) como participante do conselho deliberativo dessa entidade (Napio), informo que desde a aprovação da sua criação, em 13.04.91, até a data de sua extinção, não fui convocado e, portanto, não participei de nenhuma reunião (…)".

Outro professor, Sebastião Luiz Aguiar Greghi, escreveu em 29 de maio de 1998: "(…) não mais participei de qualquer tipo de atividade desenvolvida por aquele núcleo (Napio), embora meu nome possa constar em projetos de pesquisa, juntamente com outros docentes, mesmo jamais tendo participado de qualquer fase dessas pesquisas (…)". A julgar pelos depoimentos, o Napio era sinônimo de Aguinaldo.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.