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Josias de Souza

Roberto: ‘Não somos censores!’ E são o quê?

Josias de Souza

30/10/2013 07h17

O grupo 'Procure Saber' levou um vídeo à internet na noite passada. Na peça, os biografáveis Gilberto Gil, Roberto Carlos e Erasmo Carlos se reposicionam no debate sobre a produção de biografias no país. Antes, defendiam a manutenção de dispositivos do Código Civil que condicionam a publicação desse tipo de livro à autorização prévia dos biografados ou, quando mortos, dos seus parentes. Agora, afirmam buscar o "ponto de equilíbrio" entre dois direitos constitucionais: o direito à privacidade e o direito à informação.

"Não somos censores", declara a certa altura, em timbre peremptório, Roberto Carlos. "Nós estamos onde sempre estivemos. Pregando a liberdade, o direito às ideias, o direito de sermos cidadãos que têm uma vida comum, que têm família e que sofrem e que amam…" Embora o Rei soe no vídeo menos confuso do que soara na entrevista de domingo passado, ele continua não fazendo nexo.

Não é preciso procurar muito para saber que, com a ajuda de Roberto Carlos, há hoje no Brasil três tipos de biografias. Além das autorizadas e das não autorizadas, existem as censuradas. Escrita por Paulo Cesar Araújo, 'Roberto Carlos em Detalhes' é, desde 2007, uma biografia do terceiro tipo. Enquanto a autocrítica do cantor não incluir a liberação da obra, sua trova sobre biografias não fará sentido.

Presidido pela empresária Paula Lavigne, o 'Procure Saber' reúne, além dos três personagens do vídeo, outros nomões da música popular brasileira. Gente como Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento e Djavan. Artistas cujas biografias não ornavam com a defesa da censura prévia de livros.

Ao se ajeitar em cena, o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil procurou imprimir à causa um sentido coletivo: "Quando nos sentimos invadidos, julgamos que temos o direito de nos preservar e, de certa forma, de preservar a todos que de alguma maneira não têm, como nós temos, o acesso à mídia, ao Judiciário e aos formadores de opinião", disse. Noutro trecho, acrescentou: "…Queremos garantias contra os ataques, os excessos, as mentiras, os insultos, os aproveitadores."

Gil tem toda razão. Mas é preciso levar em conta que já existem no país leis que permitem punir mentirosos e caluniadores. Contra eles pode-se ajuizar processos penais e ações indenizatórias. Não teria sido necessário flertar com a defesa do veto a obras sérias para realçar a eventual necessidade de aperfeiçoamento da legislação infraconstucional.

Aliás, o deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO), ele próprio vítima de uma inverdade inserida num livro, acrescentou a um projeto de lei em debate na Câmara emenda que é um bom começo de conversa. O projeto libera as biografias não autorizadas. E a emenda Caiado acelera a tramitação de processos judiciais por eventuais calúnias, injúrias e difamações cometidas por biógrafos. Essas ações passariam a tramitar no Judiciário sob rito abreviado.

O novo discurso dos artistas bate no bumbo do direito à privacidade. "Não é uma decisão fácil, mas ela passa por um juízo íntimo e julgamos ter o direito de saber o que de privado, de particular, existe em cada um de nós nas nossas vidas", diz Roberto Carlos no vídeo.

E Erasmo Carlos: "Se nos sentirmos ultrajados, temos o dever de buscar nossos direitos —sem censura prévia, sem a necessidade de que se autorize por escrito quem quer falar de quem quer que seja."

E Gilberto Gil: "Nunca quisemos exercer qualquer censura. Ao contrário, o exercicio do direito à intimidade é um fortalecimento do direito coletivo. Só existiremos enquanto sociedade se existirmos enquanto pesosas."

Em nenhum momento Roberto faz menção direta à biografia que censurou. Mas ele roça o tema numa de suas frases: "Não negamos que esta vontade de evitar a exposição da intimidade, da nossa dor ou da dor dos que nos são caros, num dado momento nos tenha levado a assumir uma posiçao radical."

Gil como que o complementa: "Mas a reflexao sobre os direitos coletivos e a necesidade de preservá-los, não só o direito à intimidade, à privacidade, mas também o direito à informaçao, nos leva a considerar que deve haver um ponto de equilíbrio entre eles."

Existe, sim, um ponto ideal. Ele parte de uma premissa básica, aparentemente já absorvida: nenhum tipo de censura, ainda que edulcorada sob o apelido de "autorização prévia, pode se sobrepor ao parágrafo IX do artigo 5 da Constituição: "É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença." Vale para as músicas da turma do 'Procure Saber'. E também vale para as biografias.

Coube a Roberto Carlos encerrar o vídeo: "Não queremos calar ninguém, mas queremos que nos ouçam." Beleza. Todo mundo já ouviu. Agora só falta liberar a biografia censurada em 2007. A menos que o Rei demonstre que Paulo Cesar Araújo mentiu ou caluniou, o súdito também tem o direito de ser ouvido. Ou lido.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.