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Josias de Souza

Crise expõe fisiologia que Dilma quis disfarçar

Josias de Souza

13/03/2014 05h52

Sérgio Lima/Folha

A crise política do governo deixou Dilma Rousseff numa constrangedora posição. A posição de uma presidente supostamente ética que preside uma coligação aética. Uma personagem desmoraliza a outra. O motim que se instalou na Câmara apenas escancarou o paradoxo. Comandante de uma esbórnia parlamentar, Dilma achou que poderia enrolar-se na bandeira da moralidade sem que seus apoiadores chiassem.

Ainda em surto, os deputados governistas transformaram a Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara em palco de um strip-tease. Deu-se nesta quarta-feira (13), durante uma sessão em que requerimentos de convocação de ministros foram aprovados em série. Quem assistiu percebeu que a coligação pró-Dilma, por gigantesca, ultrapassou as fronteiras da hipertrofia.

O autodesnudamento mostrou que as conjunções partidárias impudicas resultaram num organismo desproporcional como uma baleia na banheira. Em condições normais, a obesidade mórbida conduz à acomodação e à letargia. Mas a falta de método de Dilma fez com que os aliados emitissem sinais de irascibilidade e impaciência. Na comissão, a baleia brigou com ela mesma, acusou a si própria de desvio de verbas orçamentárias e de corrupção. Um espanto!

As cenas mais tórridas foram protagonizadas pelos líderes do PMDB, Eduardo Cunha, e do PP, Eduardo da Fonte. Discutia-se a convocação do ministro Aguinaldo Ribeiro (Cidades), representante do PP na Esplanada. Um deputado do PT, Edson Santos, que propusera a retirada do requerimento da pauta, desistiu do pedido. Fonte se dispôs a subscrevê-lo. Cunha protestou: o regimento não prevê subscrição verbal.

"Eu assino agora", reagiu Fonte. "Isso é matéria vencida", bateu o pé Cunha. "Eu peço que seja incluído requerimento de convoção do ministro da Agricultura e do ministro do Turismo também", devolveu Fonte, apontando para dois feudos do PMDB na equipe de Dilma. "Nenhum problema, terá o apoio do PMDB", ironizou Cunha. Lero vai, lero vem, Rodrigo Maia, do DEM, sapateou sobre o inusitado: "Se a base [do governo] quer convocar todos os ministros, é melhor convocar a presidente Dilma logo."

Minutos antes, o deputado Carlos Brandão, do PSDB, autor do requerimento de convocação do ministro das Cidades, expusera as razões do pedido. Queria explicações sobre a paralisia das obras de mobilidade urbana, sobre uma "resolução extremamente suspeita" que obrigará todas as autoescolas a adquirirem um certo tipo de "simulador" de trânsito e, sobretudo, sobre a distribuição irregular de emendas orçamentárias (ouça aqui).

Para Carlos Brandão, o "assunto mais grave" é a questão das emendas penduradas no Orçamento pelos parlamentares. "Há uma grave denúncia de que ministro distribuiu uma quantidade enorme de recursos extra-orçamentários para sua terra, a Paraíba. Foram mais de R$ 60 milhões."

Havia mais: recursos liberados pela Casa Civil da Presidência para deputados de outros Estados "foram desviados para a Paraíba." Entre os lesados, há correligionários do próprio ministro. "Vários deputados aqui, do PP, estão reclamando dessa atitude do ministro." Havia pior: "Existe a suspeita de uma triangulação ministerial. Ministro trocando emendas com outros ministros, para não dar na cara. Um joga pro Estado do outro, outro joga pra cá. E fica essa confusão… Uma farra de emendas".

A baleia se revirou na banheira. E o deputado Márcio Junqueira, do neogovernista Pros, sugeriu que fosse chamada para se explicar também a ministra petista Ideli Salvatti (Relações Institucionais). Por quê? "Nós temos informações de que foram alocados para Santa Catarina [Estado de Ideli] mais de R$ 100 milhões sem o crivo de parlamentares daquele Estado." Administradora do balcão de Dilma, Ideli tem a atribuição de servir à baleia a ração de emendas. Mas, na versão do aliado, a ministra é mais generosa consigo mesma.

Márcio Junqueira (áudio disponível aqui) festejou a revolta da baleia como um sopro dos "bons ventos". Voltando-se para Eduardo Cunha, sugeriu: "Vamos aproveitar essa ventania". Além de Aguinaldo e Ideli, queria levar à comissão "o Gastão [Vieira] do Turismo, e o Toninho Andrade, da Agricultura". Eduardo da Fonte, o líder do PP, ecoou o colega, sugerindo que o autor do pedido adicionasse na lista "outros dois, ou três, ou quatro, ou cinco ministros" que estariam fazendo a triangulação de emendas, uns enviando verbas para os Estados dos outros.

Fonte repisou a sugestão de que o titular das Cidades fosse convidado, não convocado. Recordou que, no início da sessão, por sugestão de Eduardo Cunha, o PSDB concordara em retirar da pauta um pedido de convocação do ministro Edison Lobão (Minas e Energia), apadrinhado de José Sarney (PMDB-AP). Lobão viria para explicar denúncias de corrupção na Petrobras. Mas ficara decidido que a comissão convidaria a presidente da estatal, a petista Graça Foster. Apenas na hipótese de ela não dar as caras em 30dias é que Lobão seria incomodado.

A baleia saltou na banheira. E Eduardo Cunha foi à jugular de Eduardo da Fonte: "Não apoiei a convocação do ministro das Cidades porque ele pegou dinheiro [das emendas] e colocou na Paraíba, não. É porque a resolução do Contran [aquela que obriga autoescolas a comprar simuladores] é um escândalo." Heimm?!? "Esse simulador é uma corrupção que deve estar por trás disso aqui, com uma única empresa." (ouça)

O saldo do strip-tease foi a aprovação de dois convites —Graça 'Petrobras' Foster e o ministro da Saúde Athur 'Médicos Cubanos' Chioro— e de quatro convocações —os ministros Manuel 'ONGs Companheiras' Dias (Trabalho), Gilberto 'Verbas para o MST' Carvalho (Secretaria-Geral da Presidência) e Jorge 'Eu Estou de Olho' Hage (CGU).

Impressionado com a aprovação de tantos requerimentos da oposição, o deputado Mendonça Filho, líder do ultraminoritário DEM, festejou o instinto suicida da baleia como "o começo do fim do governo da presidente Dilma Rousseff". (ouça) Realçou o inusitado de o próprio líder do PMDB denunciar a existência de corrupção no governo. "Desde ontem, foi proclamado aqui no Parlamento brasileiro uma espécie de independência dos parlamentares, a retirada do jugo do Executivo", Mendonça exagerou.

Ao se desnudar, a baleia sinaliza que quer tudo, menos livrar-se do Executivo. E a divergência entre os dois Eduardos demonstra que Dilma começa a entender o recado. Amaciado pelo ministro Aloizio Mercadante (Casa Civil), o novo domador do Planalto, Fonte e a maioria do seu PP já saltaram do "blocão" capitaneado por Cunha. Domaram-se também o PDT e o Pros.

Escorada na castidade presumida, Dilma vai se tornando a maior evidência de que, com o tempo, qualquer um pode atingir a perfeição da impudência. A conta da reforma ministerial será fechada. Promete-se que as emendas voltarão a fluir. Quando o melado parar de escorrer na Câmara, Eduardo Cunha ainda vai dizer: "Será que eu tenho que fazer tudo nessa joça?!? Até a próxima crise.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.