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Josias de Souza

CPI: a oposição bate cabeça e Renan prevalece

Josias de Souza

08/05/2014 07h36

José Cruz/ABr

Na noite passada, quem assistiu à cena do deputado pernambucano Mendonça Filho, líder do DEM, investindo contra o senador alagoano Renan Calheiros, durante a sessão plenária do Congresso Nacional, teve a impressão de que testemunharia um acontecimento memorável. Renan estava por cima, encarapitado na presidência da Mesa. Mendonça, por baixo, no microfone dos apartes. Todos sabiam que Renan protagonizaria mais uma de suas manobras para socorrer o governo e a si próprio, empurrando com a barriga a instalação da CPI mista da Petrobras.

"Vossa excelência não é presidente do Congresso da presidente Dilma Rousseff. Vossa excelência é presidente do Congresso do povo brasileiro", afirmou Mendonça. Ele falava com a voz impregnada de indignação. "Vossa Excelência não pode, sob pressão do Palácio do Planalto, manobrar para impedir a criação de uma CPI que tem o único propósito de investigar irregularidades, fundada num direito constitucional da oposição, da minoria."

Cenho crispado, Renan olhava para Mendonça com ares de incredulidade. Não é usual que um parlamentar se dirija ao todo-poderoso do Congresso com termos assim, tão ácidos. "O que está se vendo aqui é uma verdadeira chicana legislativa para impedir o Parlamento de cumprir sua missão constitucional", prosseguiu o deputado. "Peço a Vossa Excelência, em nome da preservação da independência do Poder Legislativo, que não se submeta à vontade do Palácio do Planalto. Faça cumprir a Constituição."

De repente, uma sessão que parecia digna de ficar na memória foi deslizando rumo ao patético. Os principais caciques da oposição deixaram Mendonça Filho falando sozinho. Os oposicionistas do Senado preferiram não se opor a Renan. Presente à sessão, o presidenciável tucano Aécio Neves, se autoconverteu em líder da banda muda. Não abriu o bico. Nem sinal da infantaria de Eduardo Campos (PSB). Os deputados Ronaldo Caiado (DEM-GO) e Rubens Bueno (PPS-PR) ainda esboçaram uma reação. Mas era tarde. Sob o silêncio gritante de quem mais deveria protestar, Renan converteu o Congresso numa espécie de quarto de despojos do Planalto.

Para entender o que sucedeu, é preciso recuar a 1º de abril, o Dia da Mentira. Nessa data, Renan leu no plenário do Senado um primeiro pedido de CPI da Petrobras. O requerimento cumpria os três requisitos que a Constituição exige para que uma investigação parlamentar seja deflagrada: trazia as assinaturas de mais de um terço dos senadores, especificava o objeto da investigação e fixava um prazo para o término dos trabalhos. Quando isso ocorre, o presidente da Casa legislativa só tem uma coisa a fazer: providenciar a instalação da CPI.

Em combinação com Planalto e o PT, Renan protagonizou as manobras que condicionaram o direito constitucional da minoria à vontade da maioria. Um atentado à jurisprudência do STF. Vem daí que a CPI que investigaria a Petrobras no Senado, que poderia estar funcionando há 37 dias, ainda não foi instalada.

Em 15 de abril, Renan leu, em sessão conjunta do Congresso, um segundo pedido de CPI. Dessa vez, uma comissão mista, com deputados e senadores. Consorciado com o petismo, Renan submeteu a nova comissão às mesmas manobras que vitimaram a primeira. Resultado: a CPI mista, que poderia estar varejando a Petrobras há 22 dias, também não saiu do papel.

Sobreveio, em 23 de abril, a liminar da ministra Rosa Weber, do Supremo. Ela reafirmou o que Renan fingia desconhecer: observadas as pré-condições fixadas na Constituição, as CPIs devem ser instaladas imediatamente. Sem medo de parecer medíocre, Renan recorreu ao plenário do STF contra a liminar da ministra. Algo tão esdrúxulo quanto desnecessário, já que a própria Rosa Weber, em seu despacho, informara que sua decisão passará pelo crivo do pleno do tribunal.

Pois bem. Como o recurso de Renan não suspende os efeitos da liminar já concedida, as duas CPIs estão prontas para funcionar há 15 dias. Se o Legislativo fosse feito à base de bom senso, Renan se renderia às evidências, fecharia sua conta com o Planalto, reuniria os líderes e negociaria a instalação da CPI mista, com a presença de parlamentares das duas Casas do Congresso. Mas a disposição de Renan de prestar serviços ao Planalto é ilimitada. E o Parlamento convive com o inusitado: tem duas CPIs e nenhuma investigação.

Torturando os regimentos do Congresso, da Câmara e do Senado, Renan recolhe os artigos que melhor se ajustam aos seus despropósitos e conta os prazos como bem entende. Ele já havia estabelecido que a CPI do Senado, mais dócil e inteiramente domesticada pelo governo, deve começar a funcionar na semana que vem. E acionou a barriga para empurrar a CPI mista, apinhada de silvérios governistas, para uma data bem próxima do mês da Copa do Mundo, que será sucedida pelo recesso parlamentar, que será enganchado no calendário eleitoral, que esvaziará o Congresso.

Renan convocou a sessão da noite passada a pretexto de decidir sobre as "questões de ordem" que haviam enviado a CPI mista para o freezer. Repetiu toda a coreografia que executara no Senado quando congelara a primeira CPI. Esqueceu, convenientemente, de um detalhe: a pantomima já havia sido desautorizada pela liminar do STF. Fazendo pose de bom moço, Renan, o magnânimo, disse que decidira aplicar à CPI mista, que inclui os deputados, o mesmo entendimento aplicado por Rosa Weber à CPI só de senadores. Convidou os líderes a indicar os membros da comissão ampliada.

Porém, em decisão desprovida de nexo, Renan exercitou o seu governismo ao deliberar sobre as mesmas questões de ordem que a liminar do Supremo tornara sem efeito no Senado. Como se fosse pouco, relançou a tese, também fulminada por Rosa Weber, de que a 'CPI combo' proposta pelo PT, aquela que mistura os alhos da Petrobras com os bugalhos do cartel do metrô de São Paulo, deve prevalecer sobre a comissão exclusiva da estatal petroleira. Embrulhou tudo e, como se a liminar do STF não existisse, enviou para deliberação da Comissão de Constituição e Justiça. Ao mesmo tempo, mandou instalar uma nova CPI, proposta pelo PT, exclusivamente voltada à apuração do cartel que tisna a reputação do tucanato paulista.

Quem acompanhou a sessão ficou com a impressão de que Renan enlouqueceu. É preciso apertar os olhos para perceber que há método na loucura do senador. Ele não precisaria convocar a sessão do Congresso. Os prazos para as indicações dos membros das duas CPIs petroleiras estão vencidos. Mas Renan combinou com o Planalto que fingiria que o calendário começou a correr agora. Daí a revolta de Mendonça Filho.

Manejando o regimento, o líder do DEM demonstrou que Renan deveria instalar imediatamente a CPI. Na falta de indicação dos líderes, cabe a ele escolher os membros da comissão. Mas Renan invoca uma velha decisão do STF sobre a defunta CPI dos Bingos, recorre a um pedaço do regimento da Câmara que se aplica às comissões permanentes, não às comissões de inquérito, e decreta que o prazo para as indicações é de oito sessões legislativas —cinco para que os líderes exerçam suas prerrogativas e mais três para que ele próprio, como presidente Congresso, faça na marra as escolhas que os partidos não fizerem por opção. Com sorte, empurra-se a CPI para depois do dia 25 de maio. Com azar, joga-se a encrenca para junho.

Até lá, já estará funcionando a CPI do Senado, cuja composição foi ajeitada para não investigar. Quanto à CPI mista, se um dia vier a ser instalada, bastará ao governo retirar sua tropa de campo, negando quorum. O resto será resolvido pela Seleção Brasileira, já convocada por Felipão. Tudo muito apropriado, já que a vida no Congresso é muito parecida com o futebol. A diferença é que canelada conta a favor, vale gol de mão e Renan, o Supremo juiz, faz suas próprias regras. Ele não deve nada a ninguém. Muito menos explicações.

Outra diferença é que o time da oposição joga com bola quadrada. Prova disso foi o comportamento do deputado baiano Antonio Imbassahy, líder do PSDB. Depois de assistir à descompostura que o companheiro Mendonça aplicara em Renan, o tucano foi ao microfone de apartes. Pediu esclarecimentos: "É importante que fique claro perante os olhos e os ouvidos da nação que Vossa Excelência está, nesse momento, deliberando pela instalação da CPI mista, em conformidade com a decisão da ministra Rosa Weber, CPI restritira ao caso Petrobas. É isso?" Renan concordou com movimentos de cabeça.

Imbassahy, então, indicou os dois representantes do PSDB na CPI e emendou: "Estamos entregando a Vossa Excelência os nomes, confiando que os prazos serão cumpridos: cinco sessões para que os líderes façam as indicações e, se assim não fizerem, Vossa Excelência, de ofício, haverá de fazer as indicações. Está muito claro. O PSDB não pensa diferente…" Então, tá!

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.