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Josias de Souza

Uma CPI para investigar a inutilidade das CPIs

Josias de Souza

03/08/2014 05h31

Já se sabia que as duas CPIs abertas no Congresso para investigar as mutretas praticadas na Petrobras não resultariam em nada. Mas, de repente, nada tornou-se uma palavra que ultrapassa tudo. E as petro-CPIs revelaram sua verdadeira utilidade. Servem para consolidar o processo de avacalhação do instituto da Comissão Parlamentar de Inquérito.

Há muito tempo que CPI virou sinônimo de teatro circense. Mas a plateia só enxergava o que sucedia no palco, que é o pedaço menos interessante do espetáculo. O público ouvia o ruído abafado das arrumações nos bastidores e tinha enorme curiosidade para saber o que acontecia atrás do pano.

Como toda farsa tem dois gumes, o repórter Hugo Marques obteve um vídeo clandestino. Nele, aparece a gravação de um dos ensaios de CPI. Foi como se a cortina se abrisse fora de hora. Personagens foram surpreendidos longe de suas marcas, fazendo a maquiagem, ajustando a peruca e escolhendo o melhor nariz. A cena tem 20 minutos, dos quais 2min40s estão disponíveis no vídeo lá do alto.

Ficou-se sabendo que depoentes como Nestor Cerveró e José Sérgio Gabrielli, ex-diretor e ex-presidente da Petrobras, receberam previamente as perguntas que lhes seriam dirigidas, sob holofotes, na pseudo-inquirição. Apalparam com antecedência até sugestões de respostas, de modo a evitar contradições.

A gravação das coxias foi feita na véspera do depoimento de Cerveró na CPI petroleira do Senado. O resultado foi patético. Conforme noticiado aqui, Cerveró falou para um plenário ermo. Afora o presidente, Vital do Rêgo (PMDB-PB), e o relator, José Pimentel (PT-CE), havia no plenário da comissão uma mísera senadora: Vanessa Graziottin (PCdoB-AM).

Cerveró responder a 157 perguntas, a maioria do relator: 138. Mas o senador Pimentel, escalado pelo PT para encenar a relatoria, se absteve de perguntar. Numa cena inusitada, o depoente, munido do questionário, leu as indagações, autoinquirindo-se. Repare o acinte no vídeo abaixo.

A certa altura, a senadora Vanessa tirou um sarro da oposição, que se ausentara da sessão para não legitimar o teatro. Ela disse: "Lutaram muito para que a CPI fosse instalada, mas agora, em vez de participar, preferem ficar nominando a CPI de 'CPI-amiga', de 'CPI chapa-branca'. Com todo esse conjunto de questionamentos!" Pois é. O que dirá agora a senadora? Com que cara o relator Pimentel ressurgirá em cena?

Os brasileiros mais otimistas gostam de pensar que tudo o que aconteceu nas ruas durante os protestos de junho de 2013 foi o país dizendo aos seus malfeitores que não tem mais saco para fazer papel de bobo. E que a indignação transbordante virou uma força política consequente, capaz de tomar as providências necessárias. Será?

O aviltamento da Petrobras justifica a constituição de CPIs. A coreagrafia organizada pelo Planalto para evitar a investigação reforça sua necessidade. Presidente do Congresso, Renan Calheiros (PMDB-AL) fez o que prometera a Dilma Rousseff. Graças às suas manobras, a apuração começou às vésperas da Copa. Sobreveio o recesso. Seguiu-se a campanha eleitoral.

Operando assim, com as fornalhas do Legislativo semi-desligadas, as CPIs exageram na teatralidade. A imprensa, aos pouquinhos, vai abandonando a condição de bumbo inocente. Escalada para o papel de boba, a plateia deveria punir os canastrões e os maus atores negando-lhes os votos na eleição de 5 de outubro.

Responsáveis pela Operação Lava Jato, a Polícia Federal, a Procuradoria e o juiz federal Sérgio Moro se encarregariam do resto. Em inquéritos que não devem nada ao palco das CPIs, essa turma já abriu nove processos contra mais de quatro dezenas de pessoas. Entre elas o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e o doleiro Alberto Yousseff, mantidos preventivamente atrás das grades.

Deve-se a esse pessoal também a quebra dos sigilos bancário e fiscal de algumas vistosas logomarcas que fizeram negócios suspeitos com a Petrobras, sob intermediação de Paulo Costa, com pedágios asseados na lavanderia de Youssef. Expuseram-se, de resto, os glúteos do deputado federal paranaense André Vargas.

Apeado da vice-presidência da Câmara e desfiliado do PT, Vargas responde a processo de cassação por falta de decoro na Comissão de Ética da Câmara. Foram ao STF, por ora, pedidos de abertura de inquéritos contra Vargas, o deputado Luiz Argôlo (PP-BA) e o senador Fernando Collor (PTB-AL).

Considerando-se o estágio embrionário da apuração e a quantidade de material estocado pelos investigadores —mensagens eletrônicas extraídas de 34 telefones celurares de Youssef e mais de 80 mil documentos apreendidos— não são negligenciáveis as chances de surgirem novas surpresas.

Ao acender o forno diante de tanta matéria-prima, as CPIs da Petrobras não assam apenas pizzas. Torram a paciência do público, já bem inquieto. Não fosse a completa desmoralização do instituto da CPI, a rapaziada talvez voltasse às ruas com faixas e cartazes cobrando a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a inutilidade das CPIs.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.