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Josias de Souza

SP gere crise hídrica com ética no volume morto

Josias de Souza

24/10/2014 17h33

Há 19 dias, a população de São Paulo concedeu ao tucano Geraldo Alckmin a maior honraria que um político pode receber. Reelegeu-o no primeiro turno. O eleitor paulista renovou o voto de confiança no governador num instante em que a crise hídrica resseca-lhe os humores. Fez isso por achar que: 1) as alternativas eleitorais eram precárias; e 2) a falta d'água é mais culpa de São Pedro que de Alckmin.

Pois bem. Nesta sexta-feira, os repórteres Bruno Boghossian e Paulo Gama levaram às manchetes uma dessas gravações que costumam vazar para provar que aquilo que os governantes dizem ao contribuinte nunca é tão importante quanto o que o contribuinte ouve sem querer. Ouve-se na fita a voz de Dilma Pena, presidente da Sabesp, a companhia de abastecimento de São Paulo.

Numa reunião com a cúpula da empresa, a doutora soou assim: "Por uma orientação superior, a Sabesp tem estado muito pouco na mídia. Acho que é um erro. Nós tínhamos de estar mais na mídia, os superintendentes locais, nas rádios comunitárias. […] Todos falando sobre um tema repetido, monocórdio: economia de água."

A certa altura, dona Dilma resumiu o que toda a Sabesp deveria estar gritando: "Cidadão, economize água." Simples assim. Apenas três vocábulos. "Isso tinha de estar reiteradamente na mídia", enfatizou a doutora. "Mas nós temos de seguir orientação, nós temos superiores, e a orientação não tem sido essa. Mas é um erro. É um erro."

Tomada pelas palavras, a presidente da Sabesp silenciou apenas para fora da companhia. Livrava-se da mordaça dentro dos gabinetes: "Tenho consciência absoluta, e falo para as pessoas com quem eu converso sobre esse tema, mesmo meus superiores. Acho um erro esta administração da comunicação dos funcionários da Sabesp, que são responsáveis por manter o abastecimento, com o cliente."

O que a doutora Dilma Pena afirmou, com outras palavras, foi o seguinte: o governo de São Paulo enganou a população para não prejudicar a reeleição de Alckmin. A Sabesp tentou evitar que sua clientela fosse feita de boba. Mas forças "superiores" proibiram a companhia de alertar à torcida do Neymar sobre a necessidade de poupar água em proporções acima das que já vinham sendo economizadas. Em nota, o Palácio dos Bandeirantes disse que cabe à autora dos comentários esclarecê-los.

Talvez o governador reeleito e seus operadores políticos avaliem que o silêncio da Sabesp foi um sucesso. Mas é a torcida do Neymar quem sofre os efeitos da falta d'água. Pesquisa Datafolha divulgada há quatro dias informou que 60% dos paulistanos dizem ter ficado sem água nas torneiras em algum momento dos últimos 30 dias.

Essa gente logo, logo vai se dar conta de que os "superiores" da Sabesp administram a crise hídrica com os valores éticos no último estágio do volume morto. No macrocosmo de São Paulo, o silêncio imposto a Dilma Pena deve ter alguma influência no encurtamento da vantagem que Aécio Neves levava nas sondagens eleitorais do Estado em relação àquela outa Dilma, a Rousseff.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.