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Josias de Souza

Memorial da Democracia de Lula omite escândalos e os erros históricos do PT

Josias de Souza

03/09/2015 04h39

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Lançado na noite de terça-feira, o museu virtual do Instituto Lula, chamado de 'Memorial da Democracia', tem a pretensão de contar a "história das lutas do povo brasileiro pela liberdade e pela justiça social". Pratica, porém, uma historiografia caolha. Só vê a metade. O acervo do site omite dos fatos históricos todos os grandes erros e os escândalos protagonizados pelo PT.

Por ora, o museu aberto pelo Instituto Lula na internet oferece como acervo um vídeo e duas "linhas do tempo" com ilustrações: 1964—1985 e 1985—2002. Nelas, recorda-se que a eleição indireta de Tancredo Neves pôs fim a uma ditadura militar de 21 anos. Mas omite-se o fato de que o PT se recusou a participar desse momento histórico, abstendo-se de comparecer ao colégio eleitoral.

Quem visita o memorial do Instituto Lula fica sabendo que a Constituinte de 1988 resultou numa nova constituição cujo texto serviu de base para a transição do Brasil para a democracia. Mas não há no museu virtual uma mísera informação sobre o fato de o PT ter se recusado a subscrever a Carta que Ulysses Guimarães chamou de "Constituição Cidadã".

O museu petista reconhece que foi graças ao Plano Real que o Brasil venceu a batalha contra a inflação. Esquece de mencionar, porém, que o PT votou contra as medidas lançadas sob Itamar Franco e implementadas no governo tucano de Fernando Henrique Cardoso. De resto, cuida de diminuir o feito com observações pouco lisonjeiras.

Coisas assim: o Real "foi uma conquista importantíssima, mas infelizmente na cartilha do neoliberalismo, dominante na época, o povo não passava de um detalhe…" Ou assim: o Plano Real "foge do script dos anteriores e estabiliza a moeda, mas o país paga um alto preço."

O museu é pródigo nas menções desairosas sobre a era FHC. Apresenta os dois governos tucanos como uma época de escândalos —do caso Sivam à compra de votos da reeleição—, de privatizações danosas, de generosidade com os bancos e de ruína econômica e social.

"Era o país do desemprego, baixos salários, falta de oportunidades, confinamento da população pobre e preta nos guetos. Foram tempos de grande bronca social e forte revolta política. O Brasil parecia estar à beira do abismo. Mas graças à democracia encontrou forças para avançar…"

Em contraposição a tudo isso, a chegada de Lula ao poder é esquematicamente apresentada como uma espécie de portal de acesso ao Éden: "Em 2002, o país elegeu o primeiro operário. E reelegeu em 2006. Em 2010, também pela primeira vez em nossa história, entregou a uma mulher o comando do país. Ela foi reeleita em 2014. Tempos de esperança, tempos de oportunidade, tempos de mais democracia…"

Por mal dos pecados, o museu virtual do Instituto Lula, por zarolho, ainda não enxergou a história dos governos petistas. Seu relato se encerra na posse de Lula. O texto do último quadro da linha do tempo conclui, enigmático: "Mais democracia, mais oportunidades. Em breve aqui." E nada de mensalão. Nem sinal do bordão "eu não sabia". Nenhum vestígio da passagem da cúpula do PT pela cadeia. Nenhuma menção à pilhagem da Petrobras, ao estelionato eleitoral de 2014 e ao fiasco gerencial de Dilma.

Há outras excentricidades no acervo. Cita a gestão de Celso Pitta na prefeitura de São Paulo, "marcada pela corrupção", como o início do "declínio do malufismo". Menciona também o impeachment de Fernando Collor. Só não diz que Paulo Maluf e Collor tornaram-se heróis da resistência dos governos petistas. Collor foi além: virou sócio do petismo na pilhagem da Petrobras.

– Atualização feita às 18h34 desta quinta-feira (3): A assessoria do Instituto Lula enviou ao signatário do blog uma nota. Nela, informa que a entidade nunca teve a "pretensão de apresentar uma historiografia da verdade absoluta." Sustenta, de resto, que o PT subscreveu a Constituição de 88. Vai abaixo a íntegra da manifestação:

AspasPequenasSobre o texto "Memorial da Democracia de Lula omite escândalos e os erros históricos do PT", no qual o colunista nos acusa de apresentar uma "história caolha", em primeiro lugar gostaríamos de agradecer a apreciação crítica, apesar de talvez um tanto caolha. Nunca tivemos a pretensão de apresentar uma historiografia da verdade absoluta. Na verdade, não acreditamos na existência de uma historiografia inquestionável. Isso faz parte de nosso entendimento de Democracia.

O Memorial da Democracia é uma iniciativa do Instituto Lula, desenvolvido por uma equipe multidisciplinar. Ele  passou por uma longa revisão suprapartidária e de fatos antes de ir a público. É direito do colunista questionar se o desemprego na era FHC foi um problema ou não e suas demais conjecturas subjetivas.

No entanto, não é legítimo faltar com a verdade. Merece pedido de correção a frase "Mas não há no museu virtual uma mísera informação sobre o fato de o PT ter se recusado a subscrever a Carta que Ulysses Guimarães chamou de 'Constituição Cidadã"'. O PT assinou sim a Constituição Cidadã. Entendemos que a versão de que não teria assinado é uma tolice histórica repetida tantas vezes que o colunista, desatento, passou a acreditar nela. Sugerimos uma pesquisa melhor sobre o tema e a elegância de uma correção.

Quanto à falta de referências ao governo do PT, que o colunista afirma ser uma lacuna proposital, lembramos que teve início em 2003, período que ainda está sendo preparado pela equipe do Memorial, bem como os muitos períodos anteriores ao Golpe de 1964. Se tiver paciência, o colunista poderá fazer sua crítica com alguma propriedade".

Atenciosamente,

José Chrispiniano

Assessoria de Imprensa – Instituto Lula

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.