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Josias de Souza

Cunha fundará nova doutrina: deixa-pra-laísmo

Josias de Souza

02/03/2016 19h07

Ueslei Marcelino/Reuters

Pode a Câmara ser presidida por um deputado enviado pelo STF ao banco dos réus por suspeita de assaltar os cofres da Petrobras? A maioria do país acha que não. Segundo o Datafolha, 78% dos brasileiros defendem a cassação do mandato de Eduardo Cunha. Porém, no Legislativo brasileiro, uma instituição meio entreposto, meio bordel, a resposta à indagação é positiva.

Formou-se no STF uma maioria a favor do recebimento da denúncia em que a Procuradoria da República acusa Eduardo Cunha de receber US$ 5 milhões em petropropinas. Dos 11 ministros do Supremo, seis já votaram pela conversão da denúncia em ação penal e pelo envio do deputado ao banco dos réus. Na seara jurídica, o processo seguirá o seu curso. Na arena política, Cunha fundará uma nova doutrina: o deixa-pra-laísmo.

Consumado o infortúnio, o presidente da Câmara declarou-se "tranquilo". É como se Eduardo Cunha tivesse se autoconcedido um deixa-pra-lá preventivo. Não lhe passa pela cabeça deixar o comando da Câmara. Acha normal presidir a Casa arrastando as correntes de sua perversão. Os partidos de oposição esboçam uma reação. No gogó, pedem o afastamento de Cunha. Falta arregaçar as mangas.

Além de ser indultado pela banda muda da Câmara, Cunha conta com o apoio não declarado do Planalto para deixar tudo como está, para ver como fica. Dilma e seus operadores políticos avaliam que um Cunha enfraquecido ajudará a empurrar o impeachment para o túmulo. Às favas com a vontade dos 78% de brasileiros que rendem homenagens à decência.

No Brasil de hoje, a linha sucessória da República encontra-se sub judice. De trás para a frente: Renan Calheiros, presidente do Senado, é um réu esperando para acontecer; Cunha, o mandachuva da Câmara, já aconteceu; o vice Michel Temer e a titular Dilma guerreiam pelos mandatos em processos que, vitaminados por provas obtidas na Lava Jato, intimam os ministros do TSE a fazer alguma coisa. Nem que seja uma cara de nojo.

Num país assim, comandado pela anormalidade, em que os crimes do passado são tratados a golpes de amnésia coletiva, a doutrina do deixa-pra-laísmo tem enorme futuro. Além de Eduardo Cunha, há nos corredores do Congresso quatro dezenas de congressistas enrolados na Lava Jato.

Computando-se outras encrencas, há mais de 160 parlamentares com a reputação em suspenso no STF. Eles circulam pelos corredores do Parlamento como se nada tivesse sido descoberto sobre eles. No reino do deixa-pra-lá, o cinismo é uma forma de patriotismo. E a Câmara pode ser presidida por um réu.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.