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Josias de Souza

Temer demorou 10 dias para enxergar o pavor

Josias de Souza

11/01/2017 15h41

Mesmo uma pessoa como Michel Temer, dono de português refinado, habilidoso usuário de próclises e mesóclises, mestre no manuseio dos advérbios de negação e dos pronomes relativos, mesmo um personagem assim tropeça na língua. Depois de classificar de "acidente pavoroso" o penúltimo massacre de presos, o presidente abandonou a picada do eufemismo para abrir em seu discurso a clareira de um metaplasmo. Surrado no noticiário e nas redes sociais, Temer, finalmente, chamou o descalabro pelo nome: "matança pavorosa".

Em reunião com ministros sobre obras de infraestrutura, Temer dedicou um pedaço do seu discurso à ação da bandidagem organizada, cujo assanhamento expõe a impotência do poder público: "Estas organizações criminosas, PCC, Família do Norte, etc., constituem-se quase, digamos, numa regra jurídica, numa regra de direito fora do Estado. Veja que eles têm até preceitos próprios. E, para surpresa nossa, até quando o fazem aquela pavorosa matança, o fazem baseado em códigos próprios. Está é uma questão que ultrapassa os limites da segurança para preocupar a nação como um todo."

Acidente, como se sabe, é algo imprevisto. Temer demorou dez dias para reconhecer, mesmo que indiretamente, que nada do que acontece nos presídios brasileiros é acidental. O descalabro foi produzido com método, durante décadas de descaso estatal. A troca de palavras não resolve o problema. Mas é um primeiro passo. Perseverando nessa trilha, Temer talvez admita que o Plano Nacional de Segurança, anunciado nas pegadas da "pavorosa matança" é mera empulhação. Resolvido o problema do verbo, é preciso esclarecer de onde sairá a verba.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.