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Josias de Souza

Temer substituiu o ‘não sabia’ pelo ‘nada a ver’

Josias de Souza

07/03/2017 04h30

Michel Temer não tem nada a ver com os R$ 10 milhões que a Odebrecht deu ao PMDB por baixo da mesa em 2014, como não teve nada a ver com o rateio do dinheiro. Marcelo Odebrecht, o provedor dos recursos, foi recebido em jantar no Jaburu. Seu funcionário Cláudio Melo Filho acertou a distribuição do dinheiro com o atual chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, amigo do presidente há três décadas. Mas Michel Temer não tem nada a ver com isso.

Diz-se que parte do dinheiro (R$ 6 milhões) foi para a campanha de Paulo Skaf, que era o candidato de Temer ao governo de São Paulo em 2014. Informa-se que coube a Padilha fazer a divisão do que sobrou (R$ 4 milhões). Mas Michel Temer não tem nada a ver com isso.

O delator Cláudio Melo diz que um dos endereços onde mandou entregar dinheiro vivo foi o escritório paulistano do advogado José Yunes. Amigo de Temer há 50 anos, Yunes demitiu-se da assessoria especial do Planalto quando a revelação ganhou as manchetes. Mas isso não tem nada a ver com o presidente.

Com um atraso de quase três meses, José Yunes levou os lábios ao trombone para admitir que, a pedido de Eliseu Padilha, recebera em seu escritório um "pacote" das mãos do notório doleiro Lúcio Funaro. Entregou a encomenda para alguém cujo nome não se lembra. O barulho de Yunes e o mutismo de Padilha se parecem muito com uma operação para blindar o amigo-presidente. Michel Temer, obviamente, não tem nada a ver com isso também.

As contas da campanha presidencial de 2014 estão apodrecidas. O departamento de propinas da Odebrecht enfiou dinheiro roubado da Petrobras e adjacências dentro da caixa registradora do comitê eleitoral. Michel Temer não tem nada a ver com isso. Nada a ver também com os pagamentos ilegais que a Odebrecht fez ao marqueteiro João Santana no estrangeiro. O vice virou presidente graças aos mesmos 54 milhões de votos dados pelo eleitorado à antecessora deposta. Mas por que diabos Michel Temer teria alguma coisa a ver com isso?

O 'nada a ver' é uma adaptação de Michel Temer ao 'não sabia' de Lula e Dilma. Permite que ele governe sem que nenhuma revelação abale o seu otimismo. Muita gente acredita em Temer porque sua desculpa tem lógica. O presidente deveria mandar tatuar na testa a frase: "Eu não tenho nada a ver com isso." Pouparia o papel e a tinta das notas oficiais.

Hoje, Michel Temer está licenciado da presidência do PMDB. Mas comandou a legenda por 15 anos. Se durante todo esse período não teve nada a ver com descalabros como a sociedade que seu partido firmou com o PT para assaltar a Petrobras e converter obras como Belo Monte em usinas de propinas, por que Michel Temer teria algo a ver com qualquer coisa agora? Melhor indultá-lo preventivamente com uma amnésia coletiva fingida. Do contrário, seria necessário concluir que o Brasil está sendo presidido por um tolo.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.