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Josias de Souza

Temer rende às mulheres uma anti-homenagem

Josias de Souza

09/03/2017 03h24


O pensamento humano é algo tão complexo que nem o pensamento humano é complexo o bastante para compreendê-lo. Difícil, muito difícil, dificílimo saber onde Michel Temer estava com a cabeça quando decidiu homenagear as mulheres no Dia Internacional delas com um discurso em que enaltece o papel doméstico das homenageadas.

Ao realçar seu reconhecimento a tudo "quanto a mulher faz pela casa, pelo lar, pelos filhos", Temer conseguiu insultar até os homens contemporâneos, que se esforçam para dividir as tarefas de casa com parceiras cada vez mais inseridas no mercado de trabalho. A "adequada formação" dos filhos "quem faz não é o homem, é a mulher", disse o orador, com o pensamento em desalinho.

Temer, 75, é um homem entrado em anos, como se dizia na sua época. Parece não enxergar a evolução ao redor. Seu discurso talvez fosse bem recebido pelas Amélias da década de 1940, mulheres que não tinham "a menor vaidade", cantadas por Mário Lago e Ataulfo Alves.

O discurso de Temer soaria ultrapassado já na década de 1960, pois nele não caberia uma brasileira como Leila Diniz, mocinha que vinha precedida de inebriante legenda —deixava a Vênus de Milo no chinelo. Com a vantagem de ter braços.

Nelson Rodrigues dizia que gostava de falar sobre fatos do passado porque eles "exalam um cheiro de remédio de barata." O cronista se explicava: "É ótimo que assim seja. O remédio de barata é justamente o passado. Sim, o passado em aroma." A mulher de que falou Temer, ainda presa ao universo do lar, tem cheiro de naftalina.

Ao transportar essa mulher com aroma de passado para 2017, Temer produziu uma hedionda anti-homenagem. Perdeu uma excelente oportunidade de perder uma oportunidade.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.