Trocar ética pelas reformas equivale à atualização do antigo rouba, mas faz
Ao final de uma semana em que entrou para a história como o primeiro presidente a ser denunciado por corrupção em pleno exercício do mandato, Michel Temer veiculou na internet um vídeo sugestivo. Nele, autocongratulou-se pela melhoria dos indicadores econômicos. E insinuou que as investigações anti-corrupção constituem uma conspiração impatriótica para frear o avanço nacional.
O presidente arrematou sua mensagem assim: "…Com o aumento do investimento, com a aceleração do consumo e as ações que estão reduzindo a taxa de juros, logo, logo teremos a volta definitiva do crescimento e do emprego. O Brasil está caminhando, apesar de alguns pretenderem parar nosso país. Não conseguirão!"
Noutros tempos, o político que explicitamente roubava, mas fazia, reinvindicava para si uma certa imunidade ética. Era como se sua obra justificasse seus pecados, quando não era uma decorrência natural deles. A eterna tolerância com esse fenômeno do roubamasfazismo desaguou na Lava Jato. Súbito, o país ficou sabendo que a JBS tricotava seus interesses empresariais no escurinho do palácio residencial. Ou que a Odebrecht mantinha em seu organograma um departamento encarregado de comprar políticos com verbas roubadas do Estado.
Rodeado de auxiliares e apoiadores investigados por suspeita de corrupção, Michel Temer declara-se portador de uma biografia impecável. Sustenta que a denúncia da Procuradoria-Geral da República, por "trôpega", não passa de uma peça de "ficção" jurídica. O presidente dispõe de uma maneira simples e eficaz de restaurar a sua honra. Basta exigir que o Supremo Tribunal Federal exerça a sua atribuição constitucional de julgar a denúncia do procurador-geral Rodrigo Janot.
Entretanto, Temer prefere testar os limites da paciência do brasileiro, ressuscitando a tese segundo a qual as supostas realizações de um governante perdoam todos os seus meios. No momento, alheio à fome de limpeza que paira no ar, o sistema de conivências e cumplicidades que une os poderes Executivo e Legislativo articula o sepultamento da denúncia contra o presidente no plenário da Câmara.
Servindo-se da matéria-prima que Temer lhe forneceu ao receber o empresário Joesley Batista, o procurador-geral grudou na biografia limpinha do presidente a figura de Rodrigo Rocha Loures. Na conversa vadia que manteve com o inquilino do Jaburu, o delator pediu ao anfitrião que indicasse um interlocutor para tratar dos interesses de sua empresa no governo. E Temer indicou o homem da mala —filmado depois recebendo propina de R$ 500 mil.
Imprenssado pelas evidências, Temer alegou ter indicado Rocha Loures apenas para se livrar de Joesley, um "notório bandido". Curiosamente, definiu o assessor da mala como um homem "de boa índole, de muito boa índole." E entoou para a bancada apodrecida da Câmara um velho lema mosqueteiro: 'Um por todos, todos por hummm…" Pediu aos deputados que deixem tudo pra lá em nome da cumplicidade e da preservação das reformas.
De costas para a sociedade brasileira, que lhe atribui uma taxa de aprovação de 7%, a mais baixa desde José Sarney, o presidente ignora o saco cheio nacional. E oferece cargos e verbas aos deputados em troca da suspensão tácita de todos pudores morais. Num instante em que muitos chegaram a imaginar que a Lava Jato representaria um marco civilizatório, Temer e seus aliados cutucam a plateia com o pé pra ver se ela morde.
Décadas de depravação impregnaram no sistema político brasileiro um fascínio antroplógico pela cleptocracia. É como se o modelo político baseaedo no quanto eu levo nisso? roçasse os seus limites, rompesse escandalosamente esses limites e buscasse no passado a sobrevivência ou a transformação dos seus valores mais tradicionais depois do rompimento. A essa altura dos acontecimentos, a pretendida troca dos valores éticos pelas reformas econômicas equivale à atualização do velho e bom 'rouba, mas faz'. O Brasil merece outro destino. Não é mais tolerável condicionar reformas à sobrevivência de um governo que merece ser reformado.
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