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Josias de Souza

Atuação de ex-procurador pode levar à invalidação de provas no caso da JBS

Josias de Souza

10/09/2017 04h01

O procurador-geral da República Rodrigo Janot sustenta que a provável rescisão do acordo de colaboração judicial da JBS não invalida as provas obtidas por meio dos delatores. Pode não ser bem assim. Inaugurou-se nos bastidores do Supremo Tribunal Federal e da própria Procuradoria um debate sobre as consequências de uma reviravolta no acordo. As autoridades admitem que há, sim, o risco de anulação de determinadas provas. Isso tende a ocorrer se ficar comprovado que o ex-procurador Marcelo Miller orientou os delatores da JBS enquanto ainda era membro do Ministério Público Federal.

Nas últimas 72 horas, o blog conversou sobre o tema com três pessoas. Primeiro, ouviu dois procuradores da República, um deles familiarizado com as investigações da Lava Jato. Depois, escutou um ministro do Supremo Tribunal Federal. Falaram sob reserva, com o compromisso de que seus nomes fossem preservados. Os procuradores inicialmente ecoaram Janot. Ambos evocaram a lei que disciplina a colaboração premiada. Ela prevê: se a má conduta de colaboradores leva à rescisão do acordo, eles perdem os benefícios judicias. E o Estado aproveita as provas.

O ministro da Suprema Corte concordou com os procuradores. Mas fez uma ressalva: o Estado poderá aproveitar as provas desde que elas tenham sido coletadas de forma legal. O magistrado foi ao ponto: se ficar demonstrado, por exemplo, que o Marcelo Miller, ex-colaborador de Rodrigo Janot, orientou os delatores na produção das gravações que incriminaram alvos da delação, esses áudios podem ser invalidados.

O magistrado citou as gravações feitas pelo empresário Joesley Batista com Michel Temer e o senador tucano Aécio Neves. Disse ter ficado "chocado" ao saber que o dono da JBS agiu "100% alinhado" com Miller, um ex-colaborador de Janot, ainda na pele de membro do Ministério Público.

No autogrampo que provocou a reviravolta no caso JBS, Joesley diz ao executivo Ricardo Saud coisas assim: "…Eu quero que nós dois temos que estar 100% alinhado. Nós dois e o Marcelo, entendeu? É, mas nós dois temos que operar o Marcelo direitinho pra chegar no Janot e pá…." Foi esse tipo de diálogo, chamado posteriormente por Joesley de "conversa de bêbado", que causou espanto na Suprema Corte.

Diante das ponderações do ministro do Supremo, o blog voltou a conversar com um dos procuradores entrevistados anteriormente. Ele admitiu que gravações eventualmente produzidas sob orientação de Marcelo Miller poderiam ser tachadas de ilegais. Mas seria necessário provar que o ex-procurador atuou efetivamente nas duas pontas, assessorando os delatores e a Procuradoria. Ele avalia que isso ainda não está cabalmente demonstrado.

Eis o que disse o procurador: "Achamos que todas as provas, inclusive as gravações, permanecem hígidas. Mas haverá, evidentemente, um questionamento dos acusados. E o nosso Judiciário, conservador e garantista, tende a interpretar a lei em benefício dos acusados, não da sociedade. Se comprovada, a participação do Marcelo Miller como mentor da produção de provas poderia ser caracterizada como uma investigação controlada. E ações desse tipo só poderiam ser feitas com autorização judicial."

Embora concordasse com a tese do ministro do Supremo, o procurador declarou que a eventual anulação de provas específicas não extingue o processo. Afirmou que permanecerão de pé os documentos entregues por delatores, os depoimentos prestados por eles e outras evidências recolhidas ao longo da investigação.

O procurador chegou mesmo a dizer que, no processo contra Temer, congelado pela Câmara, a gravação feita por Joesley no Palácio do Jaburu pode ser substituída pelo que chamou de "confissão extrajuducial" do presidente da República. Referia-se a entrevistas e pronunciamentos nos quais Temer, ao tentar justiticar-se, confirmou o encontro e o teor da conversa tóxica com o dono da JBS.

Para reforçar sua argumentação, o procurador citou o caso da nomeação de Lula para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil no governo de Dilmar Rousseff. A nomeação foi anulada pelo Ministro Gilmar Mendes, do Supremo, com base num diálogo telefônico que escancarava a intenção de dar a Lula o foro privilegiado, livrando-o de eventuais ordens de prisão emitidas por juízes de primeira instância.

A conversa de Lula com Dilma havia sido captada num grampo telefônico da Lava Jato. Mas sua legalidade era contestada, porque a gravação ocorreu depois que o juiz Sergio Moro já havia determinado a interrupção da interceptação do telefone de Lula. Ainda assim, Gilmar não teve dúvidas em utilizar o grampo. Ele anotou em seu despacho:

"A validade da interceptação é publicamente contestada, por ter sido realizada após ordem judicial para a suspensão dos procedimentos. De fato, houve decisão determinando a interrupção das interceptações em 16 de março, às 11h13. A ordem não foi imediatamente cumprida, o que levou ao desvio e gravação do áudio mencionado. No momento, não é necessário emitir juízo sobre a licitude da gravação em tela. Há confissão sobre a existência e conteúdo da conversa, suficiente para comprovar o fato."

Gilmar acrescentou que Dilma admitira a existência da conversa e o seu conteúdo em duas oportunidades. E emendou: "Ou seja, há uma admissão pessoal da existência da conversa e da autenticidade do conteúdo da gravação. Estamos diante de um caso de confissão extrajudicial, com força para provar a conversa e seu conteúdo, de forma independente da interceptação telefônica. Aplicam-se, aqui, o artigo  212, I, do Código Civil, combinado com o artigo 353 do Código de Processo Civil."

Na avaliação do procurador que falou ao blog, ocorre a mesma coisa com a gravação da conversa de Joesley e Temer. Para ele, embora Temer tenha se recusado a prestar depoimento à Polícia Federal, suas manifestações públicas também têm o peso de uma "confissão extrajuidicial."

O debate tende a ganhar o noticiário nas próximas semanas. Sobretudo porque, ao pedir ao Supremo que mande prender Marcelo Miller junto com Joesley Batista e Ricardo Saud, Rodrigo Janot reconheceu que, a seu juízo, o ex-procurador descumpriu a lei. Resta saber até onde foi a transgressão.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.