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Josias de Souza

Estreia de Dodge no STF confirma estilo sóbrio

Josias de Souza

21/09/2017 04h25

Gênio da escrita, o cronista Nelson Rodrigues ensinou que, diante de uma folha em branco, convém evitar a literatice. "O brasileiro é fascinado pelo chocalho da palavra", costumava dizer. Em sua estréia no Supremo Tribunal Federal, a nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, preferiu manifestar-se por escrito. Encaminhou aos ministros um memorial sem chocalhos (integra aqui). No texto, disse apenas o necessário. Exprimiu-se com tal precisão cirúrgica que deu a impressão de escrever com bisturi. Revelou um estilo sóbrio e objetivo.

Estava sobre a mesa um recurso da defesa de Michel Temer. Tratava-se de decidir se o Supremo deveria enviar imediatamente à Câmara a segunda denúncia contra o presidente República ou, como requeriam os advogados, aguardar pelo término da investigação sobre o curto-circuito na colaboração judicial da JBS. A substituta de Rodrigo Janot acorrentou-se à Constituição. Resumiu o rito em três fases:

1. Cabe ao procurador-geral da República oferecer a denúncia contra o presidente.

2. Compete à Câmara dos Deputados autorizar ou não a instauração do processo.

3. Ao Supremo incumbe receber a denúncia, se for o caso, e julgar a ação penal.

"Não há lugar, portanto, para impugnar a viabilidade da denúncia fora deste rito constitucional, antes da decisão da Câmara dos Deputados", anotou Dodge. Mais tarde, se a Câmara autorizar e o Supremo concluir que Temer deve virar réu, "a defesa terá ampla margem de atuação para suscitar todas as questões que entender necessárias." Envie-se a denúncia à Câmara. E ponto.

Numa sessão em que o ministro Gilmar Mendes deferiu os pedidos da defesa de Temer num voto apinhado de chocalhos —chamou Rodrigo Janot de "mentiroso" e Marcello Miller de "Maçaranduba"—, o memorial de Raquel Dodge caiu sobre os autos como uma estreia promissora.

Até o mármore que reveste as paredes do plenário do Supremo sabe que a doutora: 1) não morre de amores por Janot, 2) abomina o jogo duplo do ex-colega Miller e 3) rumina dúvidas sobre a legalidade de procedimentos da Procuradoria no trato com os irmãos Joesley e Wesley Batista.

Entretanto, Raquel Dodge não fez uma mísera consideração sobre os personagens e suas circunstâncias. Nenhum adjetivo. Nenhuma avaliação precipitada sobre a qualidade das provas. Nada de literatice. Só a frieza objetiva das palavras sem chocalho.

A posição da doutora coincidiu com a da maioria dos magistrados. Por ora, o placar do Supremo é 7 a 1 pelo envio da denúncia à Câmara. Gilmar Mendes isolou-se. Nesta quinta-feira, serão colhidos os três últimos votos. Mas o jogo está jogado. O debate sobre a qualidade dos acordos de delação e a consistência das provas ficou para mais tarde.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.