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Josias de Souza

Temer diz ter sido vítima de ‘grande montagem’

Josias de Souza

11/03/2018 01h51

Michel Temer participa neste domingo da cerimônia de posse do presidente do Chile, Sebastián Piñera. Antes de viajar, concedeu entrevista ao jornal chileno 'La Tercera'. Na conversa, veiculada neste sábado, apresentou-se como vítima de uma "grande montagem" supostamente urdida para retirá-lo da Presidência da República. "Até o ex-presidente Lula reconheceu, recentemente, que houve uma tentativa de golpe orquestrada contra mim, à qual tive a coragem de enfrentar e vencer", disse Temer.

O presidente desqualificou as denúncias criminais formuladas contra ele. "O que houve foram denúncias inconsistentes", declarou. "Comprovou-se uma grande montagem contra a Presidência da República e a maioria dos deputados viu isso." Temer desancou Rodrigo Janot, signatário das duas denúncias que o alvejaram.

"A gestão do ex-procurador-geral da República, que apresentou as denúncias, chegou ao fim com a anulação sumária dos acordos de delação usados para tentar comprometer, em troca de imunidade total aos criminosos que hoje estão presos, o mandato presidencial."

A entrevista foi concedida antes da decisão judicial que libertou, na última sexta-feira, Joesley Batista e Ricardo Saud, sócio e executivo da J&F, respectivamente. Ambos foram transferidos do xadrez para o conforto da prisão domiciliar —um benefício que já havia sido concedido a Wesley Batista, irmão do autor do grampo do Jaburu.

"Hoje, sabemos que as falsas provas foram produzidas contra a Constituição, com a participação ilegal de procuradores, que hoje estão sob investigação", disse Temer. Foi nesse ponto que o presidente invocou o testemunho de Lula. Referia-se à entrevista que o grão-mestre do PT concedeu à Folha. Foi publica em 1º de março. Na declaração que Temer interpretou como redentora, o condenado Lula soou assim:

"É importante ter em conta que o Temer teve uma vitória quando derrubou o golpe que a TV Globo, o Janot e o Joesley tentaram dar nele. Aquele golpe tinha como pressuposto básico o Temer cair, o Rodrigo Maia [presidente da Câmara] assumir a Presidência e o Janot ter um terceiro mandato [na PGR]".

Abra-se um parêntese para realçar o seguinte: a entrevista de Temer foi para chileno ver. Nela, o presidente cometeu pelo menos três empulhações historiográficas:

1. A expressão "grande montagem" não faz jus à encrenca que paralisou o Brasil por meio ano. O enredo é, em verdade, um quebra-cabeças que não teria sido montado sem a ajuda de Temer. Não haveria escândalo se o presidente não tivesse recepcionado "um criminoso" no Jaburu, à noite e fora da agenda. O grampo de Joesley seria um traque se o presidente do Brasil não tivesse mantido com ele uma conversa vadia.

2. É falaciosa a versão de que a Câmara isentou o presidente de culpa porque as acusações feitas contra ele baseavam-se em "provas falsas" e "a maioria dos deputados viu isso." As denúncias contra Temer não sumiram. Foram congeladas. Remunerados com cargos, verbas e privilégios, os deputados proibiram o Supremo Tribunal Federal de abrir ações penais. Quando Temer deixar a Presidência, as denúncias serão retiradas do freezer. E o processo seguirá o seu curso.

3. A investigação da lambança que levou à "anulação sumária dos acordos de delação" da turma da JBS é indispensável. Aguarda-se com ansiedade o fim do inquérito contra Marcelo Miller, o ex-procurador que mantinha um pé na equipe de Rodrigo Janot e outro num escritório que zelava pelos interesses da JBS. Mas nada disso retira de cena o que há de factual contra Temer.

O grampo do Jaburu existe. A voz do presidente soa na fita. Temer indica o ex-assessor Rodrigo Rocha Loures como seu preposto junto a Joesley. Loures recebeu uma mala de Ricardo Saud, braço financeiro da JBS. Deu-se numa pizzaria de São Paulo. Dentro da mala havia propina de R$ 500 mil da JBS. A coisa foi filmada pela Polícia Federal. Não há, portanto, "provas falsas". O que existe é uma investigação momentaneamente paralisada. Que será retomada. Anulou-se o prêmio dos delatores sem jogar fora o fruto das delações. Tudo conforme previsto na lei. Fecha parênteses.

Perguntou-se a Temer o que pode acontecer na sucessão de 2018 se a candidatura de Lula for barrada pela Justiça. No começo da resposta, o entrevistado soou como se esquecesse sua condição de advogado. Defendeu a tese segundo a qual todos podem "exercer o direito político de ser julgado nas urnas pelo povo." Súbito, o doutor se recordou de que há no Brasil uma legislação e um Judiciário.

"Temos leis e às vezes elas impõem restrições e geram controvérsias. Quem interpreta e aplica as leis é o Poder Judiciário", declarou Temer. "Creio que os advogados do ex-presidente Lula levaram e levarão os recursos às cortes mais altas. Então, devemos esperar que os juízes se pronunciem, inclusive o Supremo Tribunal Federal. Como chefe do Poder Executivo, respeito a independência dos poderes e prefiro não especular. O Brasil está maduro para enfrentar os desafios da democracia."

O que está em jogo nas eleições presidenciais?, perguntou-se a Temer. E ele: "O que está em jogo é a qualidade do futuro imediato dos brasileiros. Se o Brasil vai continuar no caminho da recuperação econômica, da responsabilidade fiscal e social, ou retrocederá ao tempo das medidas populistas, equivocadas, que mnos levaram a uma recessão brutal, que superamos com sacrifício e esforço. Creio que a crise amadureceu os brasileiros e não vamos querer voltar atrás. Os eleitores têm capacidade de avaliar e exigir que os políticos tenham responsabilidade com a coisa pública. […] Implantamos as condições para que o crescimento se consolide. O próximo governante tem que manter o Brasil nesse rumo e acelerar."

Os chilenos que tiveram a oportunidade de ler os autoelogios de Temer terão dificuldades para entender por que um governante tão extraordinário é reprovado por sete em cada dez brasileiros. O presidente se vangloriou de ter retomado "o diálogo que havia sido interrompido com o Congresso" na gestão de Dilma. Absteve-se de mencionar que o combustível para o diálogo é o fisiologismo. Jactou-se de ter aprovado um teto para os gastos públicos e uma reforma do ensino médio. Omitiu que o derretimento de sua base congressual converteu em fiasco a tentativa de reformar a Previdência.

Sobre Previdência, aliás, Temer disse meias verdades. E privilegiou a metade que é mentirosa. Lamentou que a intervenção federal na segurança do Rio tenha impedido a votação da reforma previdenciária. Explicou que a Constituição brasileira impede a aprovação de emendas constitucionais  enquanto vigora a intervenção num Estado. Em verdade, a Previdência não foi votada porque o governo não dispunha dos 308 votos de que necessitava para prevalecer na Câmara.

Temer chamou de "irresponsável" o pedaço da oposição que critica a invervenção no Rio: "Estão cometendo o erro de politizar e ideologizar até o risco de vida que sofre a população do Rio, sobretudo os mais pobres, que vivem em áreas afetadas, sob o domínio de traficantes e milícias. É uma atitude, eu diria, irresponsável. Estão confundindo intervenção civil sobre segurança com militarismo e autoritarismo, em um apelo a tristes lembranças do passado. É uma comparação inoportuna."

O presidente reconheceu que a intervenção está escorada em pesquisas. Disse que "mais de 80%" dos fluminenses e dos brasileiros apoiam a providência. Repetiu que não será candidato à reeleição. "Sou candidato a entregar um país melhor a meu sucessor. Por isso fizemos as reformas, trabalhamos para recuperar o crescimento e, assim, diminuir o altíssimo desemprego que herdamos."

O desemprego, como se sabe, continua nas alturas. Há na praça 12,7 milhões de brasileiros à procura de um contracheque que lhes permita encher a geladeira. A recuperação da economia foi retardada pela deterioração moral do governo Temer, um presidente sub Júdice, cercado de auxiliares investigados, denunciados e réus. Mas os chilenos, que não conhecem Temer, talvez o comprem.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.