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Josias de Souza

Tratar caso Coaf como ‘irrisório’ magnifica o erro

Josias de Souza

15/12/2018 05h21

O caso Coaf imita uma pedra jogada do alto da montanha. Seu primeiro movimento foi lento. Mas a notícia rola há dez dias sem uma explicação capaz de detê-la. Redobrou a velocidade. Os membros da dinastia Bolsonaro e seus súditos começam a se dar conta de que ficou difícil interromper uma crise que, não tendo sido contida no nascedouro, ganhou dinâmica própria.

A coisa ficou muita parecida com uma avalanche: a movimentação atípica de R$ 1,2 milhão na conta do faz-tudo Fabrício Queiroz, os R$ 24 mil repassados à futura primeira-dama Michelle Bolsonaro, os nove assessores do gabinete do primogênito Flávio Bolsonaro gotejando parte do salário na conta tóxica, os saques em dinheiro vivo na boca do caixa, a filha de Fabrício transitando do gabinete de Flávio para o de Jair Bolsonaro sem dar expediente em nenhum deles…

Zonzos, os devotos do novo presidente temem fazer papel de bobos por falta de material para as barricadas. Parte dos apologistas do capitão começam a aderir à linha de defesa esgrimida pelo general Augusto Heleno, futuro ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional.

"O presidente tá isento disso aí", disse o general ao repórter Pedro Bial. Heleno completou: "O que apareceu dele é irrisório, uma quantia pequena, e ele mesmo já explicou." Nessa versão, caberia apenas ao faz-tudo Fabrício prover novas e definitivas explicações. Mais: eventuais transgressões atribuídas a membros do clã Bolsonaro seriam encrencas para o juizado de pequenas causas se comparadas com escândalos como mensalão e petrolão.

Mantendo-se nessa trilha, os supostos defensores de Bolsonaro não conseguirão senão magnificar o erro. Na prática, estão afirmando, com outras palavras, o seguinte: ainda que fossem comprovados, os indícios que saltam do relatório do Coaf seriam honrosos para a família Bolsonaro que, ao desviar dinheiro público, desvia pouco.

O argumento ganha ossatura antropológica quando visto sob a ótica de um clássico: o "Sermão do Bom Ladrão", do padre Antônio Vieira. Deus pôs Adão no paraíso, anotou Vieira, com poder sobre todos os viventes, como senhor absoluto de todas as coisas criadas. Exceção feita a uma árvore. Eis que, com a cumplicidade da mulher, Adão provou do único fruto que não lhe pertencia.

"E quem foi que pagou o furto?", pergunta Vieira. Ninguém menos que Deus, materializado na pele de Jesus. Condenado à cruz, pregado entre ladrões, ofereceu um exemplo aos príncipes. Um sinal de que são, também eles, responsáveis pelo roubo praticado por seus ministros. Quer dizer: não dá para dissociar os Bolsonaro de Fabrício, o correntista "atípico".

Ao sobrepor a imagem do "troco" à dos "bilhões", os aliados de Bolsonaro evocam involuntariamente outro trecho do "Sermão do Bom Ladrão". Conta Vieira que, navegando em poderosa armada, estava Alexandre Magno a conquistar a Índia quando trouxeram à sua presença um pirata dado a roubar os pescadores.

Alexandre repreendeu o pirata. E ele replicou: "Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?" Citando Lucius Annaeus Seneca, um austero filósofo e dramaturgo de origem espanhola, que serviu em Roma como conselheiro de Nero, Vieira arremata seu raciocínio: se o rei da Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, todos —rei, ladrão e pirata—merecem o mesmo nome.

Assim, beliscar nacos do salário de assessores e desviar bilhões das arcas da Petrobras são irrupções de um mesmo fenômeno. O tamanho do desvio importa pouco. De troco em troco também se chega ao bilhão. E quem se desonra no pouco mais facilmente o fará no muito.

Durante a campanha, Bolsonaro imaginou-se numa guerra do bem contra o mal. Cobrou dos adversários petistas e tucanos um comportamento de mulher de César. Agora, afirma: "Se algo estiver errado —seja comigo, com meu filho ou com o Queiroz— que paguemos a conta deste erro. Não podemos comungar com erro de ninguém." E espera receber um tratamento diferente do que dispensou aos rivais. Não receberá. É melhor 'Jair' se acostumando.

No limite, a adoção da fórmula do general Heleno —"O presidente tá isento disso aí, pois o que apareceu dele é irrisório"— levaria à criação de uma inusitada escala ética. Poderia se chamar escala São Dimas, em homenagem ao bom ladrão do Evangelho.

Quem furtasse com parcimônia na esfera pública estaria livre da sanha dos opositores, da curiosidade da imprensa e, sobretudo, estaria a salvo de órgãos de controle como o Coaf. O único inconveniente é que Bolsonaro teria de mudar o seu slogan. Ficaria mais ou menos assim: "O meu acima de tudo, a hipocrisia acima de todos."

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.