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Josias de Souza

Vale faz o certo com muitos cadáveres de atraso

Josias de Souza

30/01/2019 04h06

O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, concedeu uma entrevista que teve como pano de fundo um país alternativo: o Brasil se a barragem de Brumadinho não tivesse despejado lama sobre um pedaço do mapa de Minas Gerais e centenas de seres humanos. Um Brasil que poderia ter sido e que por muito pouco não foi.

Após reunir-se com os ministros Bento Albuquerque (Minas e Energia) e Ricardo Salles (Meio Ambiente), Schvartsman convocou os repórteres para informar que a Vale decidiu acabar com todas as barragens semelhantes às que se romperam em Mariana e Brumadinho. Restam dez. Serão extintas em até três anos.

Quer dizer, se essa providência tivesse sido adotada há três anos e dois meses, quando a barragem de Mariana tornou-se uma tragédia de repercussão planetária, o reservatório de lama de Brumadinho teria deixado de existir antes de virar uma mina assassina, com um número de vítimas jamais visto.

"É um esforço inédito de uma empresa de mineração no sentido de dar resposta cabal à altura da enorme tragédia que tivemos em Brumadinho", declarou o mandachuva da Vale, sem se dar conta de que suas palavras têm, para a companhia que dirige, o peso de uma autodenúncia.

Ficou entendido que a própria Vale admite que sua resposta ao desastre de Mariana não esteve à altura. Como a gigante da mineração preferiu viver num país fictício, fingindo que nada acontecera, um outro Brasil alternativo se apresentou, quase tão inimaginável quanto o da fantasia da Vale.

É neste país de realismo fantástico, que nenhum autor de novela ousaria descrever para não traumatizar o público, que se encontram imersos os brasileiros desde a última sexta-feira. Afora o estrago ambiental, o conta-gotas macabro do resgate de Brumadinho contabilizou no quinto dia de buscas 84 cadáveres. Restam 276 desaparecidos.

Ou seja: entre mortos e sumidos, a Vale tomou a decisão correta com um atraso de mais de três centenas de vidas. Para piorar, o governo sustenta que o número de barragens da companhia com potencial para produzir estragos é muito maior.

No Brasil que poderia ter sido e que por muito pouco não foi, Brumadinho ainda seria aquele pedaço do mapa onde o tempo não existia. Só existia o passar do tempo. Um local onde o melhor passatempo era matar… o tempo.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.