Topo

Josias de Souza

Na Era da Lava Jato, surge o peculato por amor

Josias de Souza

19/02/2019 06h27

Um homem só se conhece quando é tomado pelo desejo de conquistar uma mulher. Quando o sujeito se dedica à política, há um segundo teste: como o homem reage diante de um cofre público. Demóstenes Meira (PTB), prefeito de Camaragibe, na região metropolitana de Recife, encontra-se submetido ao duplo desafio de julgar o seu próprio comportamento num instante em que tenta causar boa impressão à noiva Taty Dantas e, simultaneamente, observar a moralidade pública.

Pense em tudo que você já fez para conquistar uma mulher. Os falsos telefonemas por engano, só para ouvir a voz dela. As bobagens que você ensaiou e disse como se tivesse pensado na hora. Os bilhetes que você escreveu sem o socorro da autocrítica. Aquele adolescente bobão era você. O adulto em que você se transformou é mero disfarce.

Com Demóstenes Meira ocorre mais ou menos a mesma coisa. A diferença é que, no esforço que empreende para impressionar a sua Taty, o prefeito transfere o papel de bobo para o contribuinte. No último domingo, o personagem exigiu que os servidores comissionados da prefeitura comparecessem a um show de Carnaval estrelado por sua noiva. Sim, Taty é cantora. Nas horas vagas, responde pelo posto de secretária municipal de Assistência Social de Camaragibe.

Num desses arroubos juvenis, o prefeito enviou via WhatsApp uma convocação para que o "tropão" fizesse número na apresentação da noiva, adensando a plateia. "Tropão" é como Demóstenes se refere à legião de apaniguados que ele empurrou para dentro da folha da prefeitura. Após formalizar a convocação, o noivo de Taty ameaçou: "A gente vai filmar e eu vou contar quantos cargos comissionados foram."

Ouvido a respeito do disparate, Demóstenes tratou a anormalidade como se fosse normal. Diferenciou os servidores concursados dos comissionados. Acha que funcionários do segundo tipo, que ele contrata e demite como bem entender, têm mesmo a obrigação de satisfazer as suas vontades. Por uma trapaça da sorte, alguém espalhou o áudio do prefeito nas redes sociais. E o Ministério Público de Pernambuco decidiu trazer os pés do prefeito, que levitam de amor por Taty, de volta para o chão.

O procurador-geral de Justiça do Estado, Francisco Dirceu Barros, mandou abrir uma investigação. Suspeita-se que o prefeito, movido pelo desejo de impressionar a noiva, cometeu contra os cofres do município o crime de peculato, que consiste em usufruir dos recursos públicos para fins privados e pessoais. Demóstenes, decerto, invocará o princípio da legítima defesa, tonificado pelo pacote de Sergio Moro. Alegará que pecou por "medo" de perder Taty e pela "violenta emoção" propiciada pela perspectiva de converter o noivado em casamento.

Em plena Era da Lava Jato, inventou-se em Pernambuco o peculato por amor. Uma evidência de que, na política, amar não é coisa para amadores.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.