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Josias de Souza

Em pronunciamento duro, Maduro poupa o Brasil

Josias de Souza

23/02/2019 19h07

Enquanto a violência fervia na fronteira da Venezuela com a Colômbia e o Brasil, Nicolás Maduro fez em Caracas a única coisa que tem feito desde que mergulhou seu país numa crise crônica: um discurso. Foi um pronunciamento duro. Nele, o autocrata venezuelano espicaçou o opositor Juan Guaidó ("palhaço e fantoche do imperialismo"), zombou de Donald Trump ("Ora, ajuda humanitária! A quem o presidente americano já ajudou na vida?") e insultou o presidente colombiano Iván Duque ("Filho da…"). Rompeu relações com a Colômbia. Curiosamente, após tratar os adversários com os pés, Maduro referiu-se ao Brasil num tom ameno. Soou como se ainda considerasse possível lidar com o governo de Jair Bolsonaro com as mãos.

Maduro absteve-se de mencionar o nome do presidente brasileiro. Disse apenas ter mandado uma "mensagem" ao Brasil: "Estamos dispostos, como sempre estivemos, a comprar todo arroz, todo leite em pó, toda a carne. Mas pagando". Esquecendo-se do calote que os revolucionários bolivarianos deram no BNDES, Maduro acrescentou: "Não somos maus pagadores. Nem mendigos. Somos gente honrada que trabalha". Simulou uma encomenda ao Estado de Roraima. "Querem trazer caminhões com leite em pó? Carne? Que venha, para os mercados populares."

A crise venezuelana deu a Nicolás Maduro a aparência de um cano furado. Assim como o cano furado esbanja água num esguicho contínuo e perdulário, o sucessor de Hugo Chávez esbanja discursos. Neste sábado, falou por mais de uma hora e meia. O problema é que, assim como o cano furado não leva água à torneira, o falatório de Maduro também não resolve o drama de seus compatriotas. Serve apenas para empurrar o impasse institucional a golpes de barriga.

O sábado parecia rosnar para Maduro. O personagem foi pendurado nas manchetes de todo o planeta como um presidente terminal, capaz de colocar a soldadesca a postos na fronteira para impedir que caminhões de alimentos e medicamentos chegassem aos compatriotas famintos e doentes. O que se viu na zona de fronteira foram cenas típicas de um cenário pré-guerra civil.

Não há a mais remota dúvida de que a corrupção e a incompetência do regime bolivariano empurraram a Venezuela para o buraco. Mas as dezenas de milhares de pessoas que foram à praça para se banhar no proselitismo populista que jorra de Maduro como água de chafariz deram uma inusitada sobrevida ao orador. Como que decidido a provar que ainda não há terra por cima do seu governo insepulto, Maduro desafiou o presidente paralelo Juan Guaidó a convocar eleições, como disse que faria depois de 30 dias de interinidade. "Onde estão os defensores da Constituição agora? Por que não convocam eleições? Eu respondo: porque o povo não está com eles."

Maduro mimou a aliança cívico-militar que o mantém no poder. Referiu-se ao bolivarianismo como uma força "insuperável". Mas deixou no ar a sensação de que não exclui a hipótese de o insuperável ser ultrapassado a qualquer momento por coisa menos pior. "É uma ordem que dou ao povo, aos militares patriotas, a todas as forças armadas bolivarianas. Se vocês amanhecerem um dia com a notícia de que fizeram algo com Nicolás Maduro, saiam às ruas."

Oscilando entre o deboche e a caricatura, Maduro convidou os compatriotas a aproveitarem o Carnaval, que na Venezuela vai de 28 de fevereiro a 1º de março. "Também merecemos", disse. Ou seja: a despeito da atmosfera de franca anormalidade, Maduro vai ficando no poder como se nada de extraordinário sucedesse ao seu redor. Resta agora saber até quando Juan Guaidó e seus aliados externos conseguirão manter a conjuntura fervendo. Maduro vai se revelando um desastre duro de roer. E os venezuelanos não têm nem eleições nem os mantimentos da ajuda humanitária.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.