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Josias de Souza

Câmara torna Bolsonaro um Napoleão do Twitter

Josias de Souza

27/03/2019 03h45

Às vésperas de completar três meses na Presidência, Jair Bolsonaro teve uma terça-feira atípica. Pela manhã, a primeira-dama Michelle levou-o ao cinema, num shopping de Brasília. À noite, foi enviado pelos deputados para o inferno, no plenário da Câmara. Irritados com o comportamento imperial do Planalto, os partidos de tendência governista se uniram às legendas oposicionistas para converter o capitão numa espécie de Napoleão do Twitter. Imbatível na trincheira virtual das redes sociais, Bolsonaro foi descoroado no mundo real do Legislativo.

O vexame imposto ao governo foi tramado com método. Retirou-se do paiol onde são guardados os artefatos tóxicos uma pauta-bomba de 2015. Coisa concebida para explodir no colo da então presidente Dilma Rousseff. Entre os signatários da peça estavam, suprema ironia, o então deputado Jair Bolsonaro e seu filho 'Zero Três', Eduardo Bolsonaro.

Trata-se de uma emenda constitucional que obriga o governo a desembolsar os investimentos enfiados no Orçamento da União pelas bancadas estaduais. Foi como se os deputados dissessem a Bolsonaro: "Não quer entregar as verbas? Pois nós vamos tomar na marra!" A coisa passou com uma facilidade inimaginável. Dois turnos de votação. No primeiro, o Waterloo imposto a Bolsonaro passou por 448 votos a 3. No segundo, o placar foi de 453 votos a 6, com uma abstenção (veja a íntegra da lista de votação).

Num instante em que o ministro Paulo Guedes (Economia) prega a desvinculação e a desindexação de todas as dotações do Orçamento, os deputados fizeram o contrário. Elevaram de 90,4% para cerca de 97% a taxa de engessamento dos gastos orçamentários anual de R$ 1,4 trilhão. A margem de manobra do governo para decidir onde as verbas devem ser aplicadas era mínima. Tornou-se ridícula.

De quebra, os deputados elevaram o valor das emendas de bancadas de 0,6% para 1% da receita corrente líquida. Noves fora as emendas individuais dos deputados, cuja execução já é impositiva, os partidos poderão destinar anualmente para os Estados algo como R$ 8 milhões —sem que o governo possa passar as verbas na lâmina.

A decisão de transportar a bomba do paiol para a pauta de votações foi tomada no início da tarde, numa reunião do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, com os líderes partidários. Os deputados foram ao encontro com a faca entre os dentes. Horas antes, Paulo Guedes mandara dizer que descumpriria o acordo de comparecer à Comissão de Justiça da Câmara.

Em vez de debater a reforma da Previdência com os deputados, o ministro da Economia foi a uma mini-reunião ministerial, no Planalto. De volta do cinema, Bolsonaro pediu aos ministros que atuassem em conjunto para reduzir a fervura no Legislativo. Informado sobre a decisão dos líderes de levar o governo à frigideira, o ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil) correu à Câmara.

Onyx fez por pressão o que deixara de fazer por opção: tentou dialogar. Àquela altura, porém, os líderes desejavam um tipo de diálogo em que o ministro ouvisse calado. Crivaram-no de críticas. Queixaram-se das caneladas virtuais de Carlos 'Zero Dois' Bolsonaro em Rodrigo Maia, do selo de "velha política" que Jair Bolsonaro grudou nos partidos que se dispõem a negociar com o governo, do desapreço com que os deputados são tratados na Esplanada, da falta de articulação política (pode me chamar de escassez de cargos e verbas)…

Inquieto, Bolsonaro tocou o telefone para Onyx quando a torrente de queixas ainda jorrava sobre seu ministro. Queria saber como andavam as coisas. Caminhavam mal. Onyx chegou a propor o que chamou de "pacto de convivência" entre Executivo e Legislativo. Escaldados, os deputados deram de ombros. O jogo estava jogado. Estava decidido que a Câmara submeteria Bolsonaro a uma emboscada.

Tudo foi concebido com frieza maquiavélica. Subscritor da emenda que explodiu no seu colo, o agora presidente da República está diante de duas alternativas: ou coloca um sorriso no meio da cara chamuscada ou reconhece que era um irresponsável na época em que rubricou a emenda.

O filho Eduardo Bolsonaro preferiu sorrir amarelo. Além de votar a favor da emenda tóxica, ele foi ao microfone do plenário. Dirigindo-se a Rodrigo Maia, declarou: "Só queria deixar aqui a nossa posição favorável à PEC, parabenizar Vossa Excelência pela presidência [da sessão]. Realmente é uma pauta que, quando Jair Bolsonaro era deputado federal, ele e eu fomos favoráveis."

Líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann preferiu votar contra e falar sério: "A Câmara é soberana, foi uma decisão de todos os líderes. Não cabe à líder do governo no Congresso fazer críticas a uma decisão da Câmara. Agora, vai haver a discussão. Em tudo, dá para a gente fazer do limão uma limonada."

Indagou-se a Rodrigo Maia: Foi uma derrota do governo? E ele, esforçando-se para impedir que o sorriso interior transbordasse: "Foi uma vitória. O PSL [partido de Bolsonaro] votou a favor. O deputado Eduardo fez um discurso dizendo que ele e o presidente Bolsonaro assinaram essa PEC."

Maldade suprema: além de converter Bolsonaro num Napoleão das redes sociais, os deputados atravessaram um Waterloo na trajetória do presidente antes do término da tradicional lua-de-mel de três meses. Fizeram isso usando uma bomba que o próprio capitão ajudou a armar na época em que era um deputado franco-atirador do baixíssimo clero.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.