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Josias de Souza

STF avaliza política do tipo uma mão suja a outra

Josias de Souza

09/05/2019 04h59

Decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal nesta quarta-feira converteu os legislativos estaduais em espécies de tribunais de exceção. Pelo apertado placar de 6 a 5, a Corte entendeu que as assembleias legislativas têm poderes para anular ordens de prisão de deputados estaduais, sustar ações penais e rever medidas cautelares —afastamento do mandato, por exemplo. Na prática, institucionalizou-se o sistema político baseado num princípio clássico: uma mão suja a outra.

O futuro, como se sabe, a Deus pertence. "E quanto ao passado, quem vai se responsabilizar por ele?", perguntavam-se os deputados estaduais desde que operações ao estilo Lava Jato viraram moda em vários pedaços do mapa. O Supremo tranquilizou-os. Culpados e cúmplices podem livrar uns aos outros de incômodos judiciais. São invioláveis e imunes, eufemismos para intocáveis e impunes.

Esse modelo que iguala políticos a seres inimputáveis como as crianças e os índios, já vigora no âmbito do Congresso. Foi acionado em 2017. A Primeira Turma do Supremo suspendera o mandato de Aécio Neves, impondo ao então senador o recolhimento domiciliar noturno. A defesa de Aécio chiou. O caso subiu para o plenário da Suprema Corte. Ali, decidiu-se transferir a palavra final sobre os infortúnios de Aécio para o plenário do Senado. Que devolveu o mandato ao tucano e revogou a reclusão noturna.

Sobreveio o "Efeito Aécio". Ao notar que toda desfaçatez não seria castigada, as assembleias estaduais sentiram-se à vontade para chafurdar no despudor. Um deputado estadual do Mato Grosso ganhou a liberdade. Dois parlamentares afastados recuperaram os mandatos no Rio Grande do Norte. A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro abriu a cela de três deputados presos, restituindo-lhes os mandatos que o Tribunal Regional Federal da 2ª Região suspendera.

Os três casos escalaram a pauta do Supremo. Iniciado em novembro de 2017, o julgamento foi interrompido quando o placar registrava 4 votos a favor da gandaia e 4 votos pela moralidade. Dias Toffoli adotara uma posição intermediária: as assembleias legislativas poderiam suspender as ações penais abertas contra os deputados. Mas não teriam poderes para revogar ordens de prisão.

Faltava recolher os votos de dois ministros. Luís Roberto Barroso votou a favor da tranca. Ricardo Lewandowski votou com a fuzarca. De repente, Toffoli, agora acomodado na poltrona de presidente do Supremo, executou diante das câmeras da TV Justiça algo muito parecido com um cavalo de pau. Ajustou o seu voto para assegurar que a banda do liberou geral prevalecesse no julgamento.

No lufa-lufa da sessão desta quarta-feira, Lewandowski declarou a certa altura: "Os parlamentares representam a soberania popular. Se não se proteger o parlamentar eleito pelo povo, certo ou errado esteja esse povo, nós caminharemos a passos acelerados para regimes autoritários e ditatoriais. A Constituição dá imunidade absoluta para o livre exercício do mandato parlamentar. Ninguém está defendendo que parlamentares possa impunemente praticar delito. Estamos fazendo a leitura estrita da Constituição."

Antes, Barroso dissera: "O Direito tem uma pretensão de conformar a realidade. Portanto, o intérprete tem sempre o dever de aferir o impacto que suas decisões produzem no mundo real. E a realidade brasileira é de revelação de um quadro estrutural de corrupção sistêmica e institucionalizada. A Constituição não pretendeu promover um regime de privilégios, ela quis assegurar o princípio republicano, a moralidade e a probidade administrativa."

Quem não quiser fazer papel de bobo nesse debate deve prestar atenção no seguinte: Elaborada nas pegadas da queda da ditadura militar, a Constituição de 88 cercou os parlamentares de imunidades capazes de proteger o exercício do mandato. Os autores do texto constitucional não poderiam supor que o antídoto da imunidade viraria no futuro o veneno da impunidade.

Num colegiado de 11 magistrados, cinco togas supremas votaram contra o fornecimento de escudos para políticos pilhados em ladroagem. Sinal de que essa leitura draconiana do texto constitucional não é uma esquisitice extravagante. A plateia leiga se pergunta: por que diabos há sempre meia dúzia de ministros no Supremo que se dizem preocupados com a corrupção endêmica, mas insistem em atribuir à Constituição significados invariavelmente favoráveis aos corruptos?

É grande o esforço para que o país retome a rotina de descaramento. Podendo ajudar, o Supremo faz questão de atrapalhar. Ao avalizar o modelo em que uma mão suja a outra, a Suprema Corte exibe uma pureza típica de menino que brinca no barro depois do banho. Depois, Toffoli reclama dos ataques que chegam pelas redes sociais!

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.