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Josias de Souza

Capitão atentou contra interesse nacional na ONU

Josias de Souza

24/09/2019 14h16

Jair Bolsonaro conseguiu uma façanha internacional. Com seu discurso na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente correspondeu a 100% das expectativas de quem não esperava que ele dissesse nada de proveitoso para o Brasil. Revelou-se um nanico diplomático. Seu pronunciamento foi um atentado contra o interesse nacional.

Incapaz de elevar a própria estatura, Bolsonaro apequenou a tribuna. Discursou na ONU como se pronunciasse uma das falas que transmite semanalmente aos súditos que o acompanham nas redes sociais —a mesma agressividade, as mesmas obsessões, os mesmos hipotéticos inimigos, o mesmo velho culto à ditadura militar.

Depois de contaminar o meio-ambiente com sua política antiambiental, Bolsonaro conseguiu estragar o ambiente inteiro. Com um discurso contaminado com pesticida ideológico, desperdiçou o que seria a melhor oportunidade para retirar da sua retórica a raiva que atrapalha os acordos internacionais, afugenta investidores estrangeiros e ameaça a pauta de exportações do agronegócio brasileiro.

O presidente desperdiçou a maior parte do seu tempo e da paciência da plateia expondo peças do seu museu particular de novidades: as ditaduras de Cuba e Venezuela, o Foro de São Paulo, a "guerra" travada pelos militares contra os que "tentaram mudar o regime brasileiro".

Com os olhos grudados num retrovisor que estacionou na era da guerra fria, Bolsonaro esqueceu de falar para o para-brisas, de onde o espreitavam líderes mundiais, chefes de organizações multilaterais e homens de negócios ávidos por uma palavra qualquer que sinalizasse o desejo de injetar racionalidade na prosa.

Sobre a temática ambiental, epicentro da preocupação mundial, Bolsonaro limitou-se a reiterar o lero-lero inverossímil que inclui da negativa do desmatamento ao compromisso com a preservação, dos ataques a ONGs à desqualificação da imprensa, do suposto respeito à cultura indígena à cobiça pelas riquezas que se escondem no subsolo das reservas indígenas.

Dizia-se no Planalto que Bolsonaro não atacaria líderes estrangeiros na ONU. Fez papel de bobo quem acreditou. Sem citar-lhe o nome, o capitão deu botinadas retóricas no francês Emmanoel Macron, acusando-o de usar "mentiras da imprensa internacional" para se portar "de forma desrespeitosa e colonialista, atacando nossa soberania".

No seu momento de maior lucidez, Bolsonaro enalteceu a agenda liberal do seu governo."Estamos abrindo a economia e nos integrando às cadeias globais de valor. Em apenas oito meses, concluímos os dois maiores acordos comerciais da história do país, aqueles firmados entre o Mercosul e a União Europeia e entre o Mercosul e a Área Europeia de Livre Comércio, o EFTA. Pretendemos seguir adiante com vários outros acordos nos próximos meses."

O nanismo diplomático de Bolsonaro impediu que enxergasse o essencial: sem retirar a raiva de sua retórica, coloca em risco conquistas que não se devem apenas ao seu governo. Ganharam impulso sob Michel Temer. E não avançaram porque foram travados pela corrupção endêmica. O extremismo ideológico é outro tipo de pesticida, mas tem o mesmo efeito devastador. Bolsonaro declarou que seu governo combate o déficit fiscal. Mas o principal déficit do Brasil no momento talvez esteja entre as orelhas do seu presidente.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.