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Josias de Souza

Investigação aberta por Toffoli vira fake inquérito

Josias de Souza

13/10/2019 05h07

Dias Toffoli pretendia uma coisa e obteve o contrário. A pretexto de resguardar a imagem do Supremo Tribunal Federal e proteger os seus membros, o presidente da Corte abriu em março uma investigação para apurar fake news e ameaças contra as togas. Decorridos sete meses, o processo revela-se uma gambiarra jurídica com potencial para eletrocutar a supremacia do Supremo.

Escolhido por Toffoli para atuar como relator do caso, Alexandre de Moraes decidiu fatiar o inquérito. Sem alarde, enviou cerca de 60 pedidos ao Ministério Público nos estados. Conforme noticiado pelo UOL, pelo menos três desses pedidos foram arquivados. Procuradores e juízes que operam na primeira instância trataram o processo de Toffoli contra fake news como uma espécie de fake inquérito.

Dois arquivamentos ocorreram em São Paulo. Em nota, o Ministério Público Federal disse ter identificado "vício de origem e de forma" na iniciativa de Toffoli. A investigação não poderia ter nascido no Judiciário, sem requisição da polícia e sem a participação da Procuradoria. De resto, as pessoas investigadas não dispunham do foro privilegiado do Supremo.

"É inconcebível que um membro do Poder Judiciário acumule os papéis de vítima, investigador e julgador", afirma a nota do Ministério Público. "Soma-se a isso o fato de o STF ter instaurado a investigação de ofício e descrito o objeto da apuração de forma ampla e genérica, o que contraria o devido processo legal".

O terceiro arquivamento foi efetivado na cidade mineira de Pouso Alegre. Ali, a Justiça Federal acatou pedido do Ministério Público Federal que apontava as seguintes impropriedades jurídicas: violação do princípio do juiz natural, violação do sistema acusatório, alijamento da Procuradoria da investigação e a escolha sem sorteio de Alexandre Moraes como relator do caso —aberrações jurídicas em série.

As anomalias já haviam sido apontadas por Raquel Dodge na época em que ela ainda era procuradora-geral da República. Entretanto, Toffoli ignorou um pedido de Dodge para que arquivasse o inquérito secreto. Na época, o relator Alexandre de Moraes reagiu às críticas como se alguma coisa lhe tivesse subido à cabeça —pelo elevador de serviço:

"Pode espernear à vontade, pode criticar à vontade", dissera Moraes. "Quem interpreta o regimento do Supremo é o Supremo. O presidente [Toffoli] abriu, o regimento autoriza, o regimento foi recepcionado com força de lei, e nós vamos prosseguir". Deu no que está dando.

Toffoli poderia ter requisitado na origem à Procuradoria-Geral da República a abertura de inquéritos. Preferiu agir "de ofício", por conta própria. Escorou-se no artigo 43 do regimento interno do Supremo. (leia abaixo).

O artigo do regimento interno que Moraes diz ter sido corretamente interpretado por Toffoli foi, em verdade, deturpado. O texto atribui ao presidente do Supremo poderes para defender a Corte contra "infrações à lei penal ocorridas na sede ou dependência do tribunal". E Toffoli resolveu tratar todo o mapa do Brasil como se fosse uma versão hipertrofiada da sede da Suprema Corte.

Aos pouquinhos, a investigação secreta de Toffoli e Moraes foi ganhando características de um inquérito multiuso. Serviu para censurar uma notícia da revista eletrônica Crusoé. Trazia Toffoli pendurado de ponta-cabeça no título. Alegara-se que a notícia era falsa. Tolice. Pressionado, Moraes teve de recuar, liberando a veiculação. Incluíram-se também no rol de investigados do Supremo auditores do Fisco e procuradores da Lava Jato.

O ministro Marco Aurélio Mello estrilou: "O que ocorre quando nos vem um contexto que sinaliza prática criminosa? Nós oficiamos o procurador-geral da República, nós oficiamos o estado-acusador. Somos estado-julgador. E devemos manter a necessária equidistância quanto a alguma coisa que surja em termos de persecução criminal".

Relator de ações protocoladas no Supremo contra o inquérito secreto, o ministro Edson Fachin pede desde maio a inclusão do tema na pauta de julgamentos do plenário. Dono da pauta, Toffoli se abstém de marcar a data.

Embevecido por um sentimento de supremacia que exclui o componente da dúvida, Toffoli parece cultivar o mito da excepcionalidade. Mas mesmo no Supremo, apinhado de semideuses, é inédita essa pretensão de ser uma potência moral que só deve contas à sua própria noção de superioridade.

Inédita também é a fidelidade com que Alexandre de Morais se dispõe a ceder sua mão de obra e seu gênio jurídico à onipotência do colega. Mais um pouco e Morais terá de converter a si próprio e Toffoli em alvos do inquérito sigiloso. No momento, nenhum outro brasileiro ofende mais o Supremo do que os responsáveis pelo inquérito que apura ataques ao Supremo.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.