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Josias de Souza

Bolsonaro edita Ato Institucional nº 1: ‘Folha não’

Josias de Souza

01/12/2019 04h27

As aparências não enganam: Quando você vê um presidente da República comportando-se de forma autoritária, provavelmente ele é autoritário. Desde que assumiu, o atual inquilino do Planalto tenta conciliar duas necessidades conflitantes: ser Jair Bolsonaro e manter a compostura exigida pelo cargo.

Ao excluir a Folha de uma licitação governamental e incitar um boicote aos anunciantes do jornal, o presidente potencializou a impressão de que Bolsonaro e compostura são realmente coisas inconciliáveis.

"Eu não quero ler a Folha mais. E ponto final. E nenhum ministro meu", disse Bolsonaro. "Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S.Paulo. Até eles aprenderem que tem uma passagem bíblica, a João 8:32. A imprensa tem a obrigação de publicar a verdade. Só isso. E os anunciantes que anunciam na Folha também".

Para Ayres Britto, ex-presidente do STF, o Planalto não realiza uma licitação, mas uma "ilícita ação". Como leitor, Bolsonaro tem todo o direito de não gostar da Folha. Como consumidor, pode se abster de comprar o jornal. Como presidente, comete uma ilegalidade ao excluir um dos principais jornais do país de uma licitação pública para a aquisição de acesso digital ao noticiário de veículos de imprensa.

A decisão de Bolsonaro viola os "princípios constitucionais da impessoalidade, isonomia, motivação e moralidade", anotou o subprocurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, Lucas Furtado, em representação protocolada na última sexta-feira.

No trecho predileto de Bolsonaro, o Evangelho de João anota: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." O problema é que o capitão opera num mundo com duas verdades: a dele e a verdadeira. O defeito não está na liberdade de expressão da imprensa, mas na dificuldade do presidente de se exprimir.

Bolsonaro chama a Folha de mentirosa e, na sequência, acusa Leonardo DiCaprio de financiar incêndios na selva amazônica. Desmantela o aparato ambiental e confraterniza-se com desmatadores. Depois, diz que o problema são as ONGs, os cientistas do Inpe e as doações feitas pelos governos da Noruega e da Alemanha.

Na sua concepção de verdade, Bolsonaro considera-se um político avesso à corrupção e aos maus costumes. Na versão verdadeira, convive doce e fraternalmente com ministros indiciados, denunciados e até um condenado.

O presidente bate bumbo pela transparência, mas esconde o amigo Fabrício Queiroz e as relações dele, que vão da assessoria tóxica ao primogênito Flávio aos vínculos com milicianos. Alardeia que Luciano Bivar, do PSL, está "queimado pra caramba" e não repara nas pesquisas que o colocam na frigideira.

Não é que Bolsonaro não goste da imprensa. A questão é que ele só aprecia três tipos de imprensa: a que não tem nada a dizer, a que prefere não dizer e a que deseja dizer coisas deliciosamente favoráveis.

A imprensa que tem o incômodo hábito de imprensar não serve. Por uma razão simples: ajusta as aparências de Bolsonaro à realidade em vez adaptar a realidade às aparências do Brasil ficcional que o capitão escolheu para governar.

Além do versículo bíblico, Bolsonaro guia-se na presidência por um slogan: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos". Nem acima, nem à direita. O desapreço de Bolsonaro pela liturgia democrática joga o Brasil para baixo.

A julgar pela aversão do presidente à imprensa livre, embora Deus esteja em toda parte, é o Tinhoso quem ocupa a mente baldia de Bolsonaro. A escassez de reações ao desatino presidencial revela que o capitão pratica suas exorbitâncias num cenário em que o absurdo vai adquirindo uma doce e persuasiva naturalidade.

Pouca gente se deu conta. Mas Bolsonaro acaba de editar o seu Ato Institucional Número Um: "Folha não!". Fez isso num instante em que o AI-5 escorre tanto de lábios aloprados como os de Eduardo Bolsonaro quanto de bocas improváveis como a de Paulo Guedes.

Com honrosas exceções, políticos, autoridades e personalidades não fizeram a concessão de uma surpresa. Aos pouquinhos, o país vai suprimindo dos seus hábitos o ponto de exclamação. Se Bolsonaro servir, num banquete, mentira desossada, a maioria engolirá com gosto. É mentira? Pois que seja mentira! E com abóbora.

Quando vier a indigestão, será tarde.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.