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Josias de Souza

Cartolagem invadiu a pequena área do Tesouro

Josias de Souza

26/07/2014 06h41

O grande legado da Copa é a comprovação de que o futebol brasileiro virou nostalgia. Só existe no replay esmaecido dos lances de um passado remoto. O vexame traz à vitrine as mazelas. E a perplexidade potencializa as ideias exóticas. A mais extravagante ganhou impulso numa reunião realizada no Palácio do Planalto nesta sexta-feira. Depois do 7 X 1, trama-se uma goleada contra o contribuinte.

Acompanhada dos ministros Guido Mantega (Fazenda) e Aldo Rebelo (Esporte), Dilma Rousseff conversou por cerca de duas horas com 14 dos principais cartolas do futebol nacional. Ao final, anunciou-se a criação de um grupo de trabalho com representantes do governo e dos clubes. Para quê?

Deseja-se colocar em pé um plano de socorro aos times de futebol, atolados em dívidas. Numa estimativa otimista, o espeto é de R$ 4 bilhões. Numa conta realista, passa dos R$ 5 bilhões. Um pedaço do problema refere-se a passivos trabalhistas. Mas o miolo do buraco é feito de sonegação de tributos e de contribuições à Previdência —dinheiro que deveria custear serviços públicos à torcida brasileira.

A encrenca vinha sendo tratada num projeto que tramita na Câmara sob denominação saneadora: Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte. Para apressar as coisas, Dilma não exclui a possibilidade de editar uma medida provisória. Por essa via, o refresco aos clubes seria servido imediatamente, antes mesmo da apreciação do Congresso. Por que tanta pressa?

Vale a pena ouvir o secretário Nacional de Futebol do Ministério do Esporte, Toninho Nascimento: "Nós temos que correr, tem clube que não chega ao final do ano se esse projeto não for aprovado." Também presente à reunião do Planalto, o presidente do São Paulo Futebol Clube, Carlos Miguel Aidar, deu uma ideia do que está em jogo:

"Nós só queremos que nos sejam dados mecanismos para corrigir o passado daqueles que nos antecederam, que erraram na gestão, que endividaram os clubes, deixaram de pagar impostos, deixaram de pagar tributos, deixaram salários atrasados, geraram passivo trabalhista muito grande. O que nós teremos com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal é a oportunidade de reequacionar tudo isso e começar daqui para frente um marco zero".

Nesse contexto, o ritmo de toque de caixa ofende a inteligência da arquibancada. Não é assim que se fazem as coisas. Do mesmo modo que não se pode atribuir a humilhação da semifinal contra a Alemanha a um mero apagão de seis minutos, não se deve pedir ao contribuinte que aceite um arranjo tributário trançado no escurinho de um ano eleitoral, com um governo e um Congresso em fim de feira.

Tem "clube que não chega ao final do ano?" Pois que quebre! Os cartolas "erraram na gestão, endividaram os clubes, deixaram de pagar impostos?" Auditoria neles! Num jogo justo, o governo exigiria a abertura das escriturações, os times iluminariam suas arcas perdidas, a controvérsia seria exposta no círculo central do gramado e a galera formaria sua opinião. Fora disso, a alegada responsabilidade fiscal vira uma espécie de abracadabra para a caverna do Ali-Babá.

Embora sejam geridos por homens de bens, os clubes de futebol negligenciaram uma regra capital: abstiveram-se de dar lucro. Ou, por outra: deram lucro nos bolsos errados. A atmosfera de penúria potencializa a diáspora de jogadores, enfraquece o espetáculo e esvazia os estádios. 
Deus talvez seja brasileiro. Mas o diabo é europeu. E leva embora os craques ainda fedendo a cueiro.

Em 2005, sob Lula, já havia brotado nos gramados nacionais, ermos de talento, uma pseudosolução para a breca dos clubes: criou-se uma loteria nova, a Timemania. É parecida com a Mega Sena.
A diferença é que, além de números, o apostador assinala nas cartelas o emblema do seu time do coração.

As combinações vencedoras são definidas em sorteios geridos pela Caixa Econômica Federal. 
E parte da grana é usada para saldar as dívidas dos times com a União. Dizia-se que seria a redenção. Não foi. Hoje, a coleta propicia um abatimento anual de cerca de R$ 70 milhões na dívida tributária dos clubes. Que não para de crescer.

No início do ano passado, já sob Dilma, o governo esboçou uma medida provisória que previa o perdão de 90% do passivo dos times. Em troca, a cartolagem assumiria o compromisso de investir em projetos sociais de formação de novos jogadores. Nessa época, Toninho Nascimento, o secretário Nacional de Futebol do Ministério do Esporte, disse ao repórter Aiuri Rebello que time de futebol não pode ser tratado como um negócio convencional.

"Não podemos tratar os clubes de futebol, alguns com mais de 100 anos de idade, como empresas comuns. É uma oportunidade de os clubes modernizarem suas gestões, um impulso".

O deputado Vicente Cândido (PT-SP) entusiasmou-se: "É uma mudança de paradigma, o governo brasileiro passa a agir diretamente no desenvolvimento de novos atletas e talentos." O ex-craque Romário (PSB-RJ), membro da Comissão de Turismo e Desporto da Câmara, também apoiou a ideia. Mas ponderou que o governo deveria exigir dos times o pagmento de pelo menos 30% das dívidas.

Ex-goleiro, o deputado Danrlei (PSD-RS) levou o pé atrás. Duvidou da eficácia da troca de dívida por projeto social. "É difícil de quantificar estes investimentos sociais", disse, antes de descer ao ponto: "Alguns clubes já pagaram suas dívidas, não devem mais nada. Como vamos compensá-los? E quem vai fiscalizar estes projetos?".

Hoje, os vocábulos "perdão" e "anistia" foram substituídos "refinanciamento" e "alongamento" das dívidas. Com remissão de multas, abatimento dos juros e prazos superiores a duas décadas, a perder de vista. Só não apareceu em campo uma alma capaz de recordar a célebre lição do juiz norte-americano Louis Brandeis (1856-1941): "A luz do Sol é o melhor dos desinfetantes."

Num jogo em que o campo não é demarcado, a bola é quadrada e canelada conta ponto a favor, os clubes invadem a pequena área do Tesouro Nacional fazendo tabelinha com o governo, que deveria ser o supremo juiz. Convidado a narrar a cena, Silvio Luiz gritaria: "Olho no lance! Pelo amor dos meus filhinhos. O que é que eu vou dizer lá em casa?"

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.