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Josias de Souza

Temer prevaleceu em madrugada de flashbacks

Josias de Souza

25/05/2016 05h23

Se você conseguir visualizar o governo como um filme, poderá entender melhor o que aconteceu no plenário do Congresso na madrugada desta quarta-feira. Exibiu-se o mesmo filme pela terceira vez. A diferença é que os mocinhos trocaram de papel com os bandidos. E vice-versa. Houve, de resto, um ajuste no enredo. Proposto pelo interino Michel Temer, o rombo no Orçamento de 2016, de R$ 170,5 bilhões, é maior do que os buracos que Dilma Rousseff, a afastada, havia apurado em 2014 e 2015.

Temer prevaleceu com a providencial ajuda de Renan Calheiros, com quem conversara no início da noite de terça-feira. Já meio entediado de dirigir a mesma cena pela terceira vez, Renan reagiu com frieza no instante em que parlamentares do PT e do PCdoB, a nova oposição, se queixaram do rolo compressor imposto por uma maioria que agora inclui os ex-oposicionistas PSDB, DEM e PPS. "A minha posição é difícil, porque a maioria e a minoria trocam de posição e eu tenho que usar as mesmas regras regimentais", disse Renan.

A sessão foi permeada de flashbacks. "Não posso agir diferentemente da maneira que agi por acasião da redução da meta fiscal de 2014, logo depois da eleição, e da redução da meta de 2015", afirmou Renan. "Vou fazer o que o regimento manda, pela terceira vez. Já estou me especializando nisso." A ex-oposição, que antes hostilizava Renan, festejou o modo como ele pilotou o trator, sua especialidade.

Emperrada pela análise de um monturo de 24 vetos presidenciais, a sessão durou mais de 16 horas. Começou por volta de 11h30 da terça-feira. E terminou às 3h44 da madrugada desta quarta. No final, a proposta de revisão da meta fiscal feita pela gestão Temer foi aprovada em votação simbólica. O senador Lindbergh Farias (PT-RJ), esgoelou-se pedindo a Renan uma verificação nominal do quórum no Senado. Mas Renan havia desligado o microfone do plenário. E fingiu não notar.

A maioria pró-Temer já havia sido esboçada na votação de um requerimento em que o PMDB requisitara a Renan a interrupção dos debates. A vontade do plenário foi aferida visualmente. Mas o PT exigiu que Renan realizasse entre os deputados presentes uma contagem nominal. Manifestaram-se a favor do ritmo de toque de caixa 287 deputados. Contra, apenas 14.

Renan se absteve de repetir a verificação do quórum também no Senado. Ficou entendido que a tropa parlamentar de Dilma esfarelou-se. Apenas PT, PCdoB e o nanico PTdoB pegaram em lanças contra o projeto de Temer. Até o PDT, que votara contra o afastamento de Dilma, aprovou o déficit de R$ 170,5 bilhões.

No filme desta madrugada, partidos como PP, PR, PSD, PTB e congêneres, que haviam traído Dilma na votação do pedido de impeachment, postaram-se novamente ao lado de Temer. Foi dando que o presidente interino recebeu o apoio dessas legendas. Exatamente como fizera Dilma.

Por mal dos pecados, nesse universo, as operações de compra e venda de lealdades deixaram de ser vistas pelo ângulo da moralidade ou da imoralidade. Tornaram-se dados de um fenômeno que se repete.

Resta agora saber qual será o preço do voto no balcão da fisiologia no instante em que Temer enviar ao Congresso o teto anual de despesas, que pressupõe o corte de verbas destinadas a áreas como saúde e educação. Como se comportará a bancada dinheirista diante de um projeto de reforma da Previdência ou de uma proposta de recriação da CPMF?

Se o afastamento de Dilma ensinou alguma coisa foi que o miolo fisiológico do Congresso só merece confiança até certo ponto. O ponto de interrogação.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.