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Josias de Souza

Faltou quepe no pedido de perdão de Cardozo

Josias de Souza

31/03/2014 19h27

Em ato público da OAB sobre os 50 anos da ditadura, o ministro José Eduardo Cardozo (Justiça) pediu desculpas pelo arbítrio e pelos abusos cometidos durante o regime militar. A encenação não faz jus ao momento. O que falta ao verbete da enclopédia é um ponto final que signifique a civilização dos militares, não a militarização da pauta civil do Ministério da Justiça.

Expressando-se "em nome do Estado brasileiro", Cardozo pediu perdão "por aquilo que foi feito na época da ditadura, pelas mortes, pelas torturas, pelas famílias que choraram". Guiando-se por autocritérios, classificou o seu gesto como "algo que mostra um novo tempo, uma realidade democrática que nós temos hoje orgulho de ter conquistador." Menos, Cardozo, bem menos!

Nem o ministro Celso Amorim (Defesa), o civil que supostamente comanda as Forças Armadas, ousou terceirizar algo tão indelegável quanto a contrição dos militares pelos excessos da ditadura. Amorim também exagerou, só que foi em direção oposta à do companheiro da Justiça.

Há quatro dias, falando numa audiência pública do Senado, Amorim como que monetarizou o silêncio do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. "O Estado brasileiro, ao pagar as indenizações já, de certa maneira, pediu desculpa por tudo que ocorreu", declarou o ministro da Defesa, dando todas as culpas por quitadas.

Cardozo e Amorim parecem personagens do Bunraku, aquele teatro japonês em que bonecos articulados são manipulados por pessoas vestidas de preto dos pés à cabeça. A plateia vê os manipuladores, mas finge que eles são invisíveis. O sucesso de Cardozo e de Amorim também depende desse compromisso implícito que leva os espectadores a fazer de conta que os militares não estão em cena puxando as cordinhas.

Ao discursar sobre o tema nesta segunda-feira, a ex-torturada Dilma Rousseff disse que nunca deixará de enaltecer os que "lutaram pela democracia, enfrentando a truculência ilegal do Estado". Mas ela repetiu: "Também reconheço e valorizo os pactos políticos que nos levaram à redemocratização". Com outras palavras, a presidente declarou que deseja recuperar a hostória, não rasgar a Lei da Anistia. Ela quer verdade, não punição.

Contra esse pano de fundo, marcado pelo desarmamento dos principais espíritos, é incompreensível que os militares continuem cultivando a ilusão de que as nódoas se apagarão com o passar do tempo. Bobagem. O silêncio, conforme já comentado aqui, é cada vez mais gritante. A culpa por delitos como a tortura não tem prazo de validade. A estupidez humana, infelizmente, nunca prescreve. Só no teatrinho de bonecos de Brasília é possível mudar de status sem mexer no quo.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.