Dilma tornou-se principal cabo eleitoral de Aécio
As épocas, como as festas, costumam acabar em detritos. Para que outra comece, alguém tem de fazer uma boa faxina. Em 2002, após oito anos de PSDB, o eleitorado escalou o PT para realizar o serviço. Decorridos quase 12 anos, o Datafolha informa que 74% dos eleitores enxergam 2014 como um ano de ressacas. Procura-se novamente um faxineiro.
Neste sábado, o tucanato formalizou a indicação de Aécio Neves. Ele ainda não é favorito. Mas, desde FHC, nenhum tucano foi à disputa com tantas chances de apalpar a vassoura. Empurra-o uma cabo eleitoral de peso. Chama-se Dilma Rousseff. É graças à deterioração do governo dela que Aécio aproxima-se do segundo turno da eleição sem ter levado à mesa nenhum plano de ação com começo, meio e fim.
Dilma reivindica uma chance de começar de novo. Alega que, com mais quatro anos, consegue arrumar a casa. Mas ela não oferece à plateia nada que se assemelhe a um exame de consciência sobre os tropeços na área econômica e o excesso de aparelhamento do Estado. Com isso, a candidata à reeleição leva água para o balde da oposição.
O que os adeptos da mudança buscam é alguém com capacidade para metabolizar o acontecido, limpar pelo menos a corrupção que vaza pelas bordas do tapete, reacender o PIB, apagar a inflação e verificar se não ficou algum apadrinhado do petismo ou do Renan Calheiros escondido dentro do sofá da Petrobras. Em junho de 2013, as ruas torceram o nariz para "tudo isso que está aí". Agora, o eleitor sinaliza a intenção de ir além da cara de nojo.
Aécio maneja mais metáforas do que propostas. Na convenção deste sábado, disse que a "brisa" que sopra o desejo de mudanças tornou-se "ventania". E está na bica de virar um "tsunami que vai varrer do governo federal aqueles que lá não têm se mostrado dignos e capazes de atender às demandas da população brasileira."
Enveredando pela seara dos símbolos, o candidato evocou duas memórias: "Se o presidente Juscelino permitiu, 60 anos atrás, o reencontro do Brasil com o desenvolvimento e a modernidade, coube a Tancredo, 30 anos depois, permitir que a gente se reencontrasse com a democracia e a liberdade. Outros 30 anos se passaram e vamos conduzir o Brasil ao reencontro com a decência."
Ironicamente, o Juscelino Kubitschek do raciocínio de Aécio, dinâmico e moderno, é uma construção a posteriori. O personagem real não era senão um político tradicional, com todas as suspeitas comuns à fauna. Era 100% feito de autoconfiança. E governou por cima do próprio governo. Seu estilo já não serve para quem precisa adotar soluções rápidas sem esbarrar nos órgãos de controle.
Tomando-se as décadas como minutos da histórica, pode-se dizer que o Brasil é uma sucessão de recomeços. Não é exagero afirmar que tudo o que aconteceu desde Juscelino foi o país real tentando alcançar a nação desenvolvida criada artificialmente, em ritmo de truque cinematográfico, por JK, o presidente dos 50 anos em 5.
Durante todo esse tempo, o Brasil tenta decidir que diabo de país deseja ser. Vieram Jânio e a renúncia, Jango e o plebiscito que restaurou o presidencialismo, 1964 e o golpe, as diretas e sua rejeição… Nesse contexto, Tancredo foi um extraordinário tecelão que produziu o tricô da redemocratização e morreu em seguida para que o país pudesse aprender com o Sarney, o fisiologismo e o Plano Cruzado tudo o que jamais deveria ser tentado novamente.
Por mal dos pecados, o primeiro presidente eleito diretamente depois da ditadura, Collor, sofreu impeachment por déficit de decência. Só no recomeço protagonizado por Itamar o Brasil conseguiria domar a inflação que Juscelino havia inaugurado junto com Brasília. Sucessor do topete-tampão, FHC tornou Real a moeda que nascera de uma sigla mágica: URV.
Aécio entrou no auditório em que se realizou a convenção do PSDB de mãos dadas com FHC. Finalmente, o PSDB retira seu principal líder do armário. Sua administração foi celebrada em vídeo. Deram-lhe até o direito ao microfone: "As urnas clamam, querem mudança", discursou o ex-presidente. "Elas cansaram de empulhação, corrupção, mentira e distanciamento entre o governo e o povo."
FHC prosseguiu: "Nós temos que ouvir o povo, estar mais próximos do povo, ganhar a confiança do povo. A caminhada do Aécio será essa." Ele discorreu sobre a Era Lula com uma dose cavalar de veneno. Dedicou ao PT e aos seus filiados adjetivos tóxicos —"ladrões" e "farsantes", por exemplo.
Bernard Shaw disse certa vez que civilização é o que sobra para ser desenterrado dez mil anos depois. Em seu discurso, Aécio fustigou o PT desenterrando da gestão FHC aquilo que ela teve de melhor: "Pelo menos numa coisa nossos adversários mantiveram a coerência. Quem foi contra o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal é quem hoje permite a volta da inflação e assina a maldita contabilidade criativa. São os que dividem o Brasil de forma perversa entre nós e eles."
Aécio não desconhece que, no atacado, os governos do PT também têm do que se jactar. O grande feito de Lula foi lançar um olhar mais generoso para o pedaço pobre da sociedade brasileira. Dilma está em apuros também porque a inflação mastiga o pouco que os programas de transferência de renda levaram à geladeira dos ex-excluídos.
O que Aécio e o tucanato não dizem é que, no varejo, os dois grupos —"nós e eles"— fizeram governos politicamente loteados e convencionais. FHC e Lula sacrificaram a aura de políticos diferentes. O sociólogo, mais intelectualizado, escorou-se em Max Weber para envernizar o fisiologismo com a teoria da troca da moeda da "convicção" pela da "responsabilidade". O ex-operário, mais prático, chegou aos mesmos fins sem se preocupar em justificar os meios.
Sob FHC, um personagem como Renan foi ministro da Justiça. Sob Lula e Dilma, ele é heroi da resistência no Congresso, junto com Sarney, Collor, Maluf e uma legião de etcéteras.
O Datafolha informa que 30% do eleitorado frequenta a conjuntura sem um candidato definido. O presidenciável que conquistar a alma dessa gente estará mais perto do êxito.
O diabo é que, para conquistar esse eleitor indeciso, será necessário, entre outras coisas, esclarecer como é possível obter o "reencontro com a decência" de que fala Aécio sem tomar distância dos "ladrões" e "farsantes" citados por FHC. Dilma perdeu essa guerra ao esconder atrás da porta a vassoura que acionara em 2011. Aécio deu um passo atrás ao coligar-se com o prontuário de Paulinho da Força Sindical, hoje dono do partido Solidariedade.
No gogó, o candidato que mais se aproxima do ideal da higienização é Eduardo Campos, do PSB. Que promete enviar Sarney e sua grei para a oposição. O problema é que, por enquanto, nem a companhia da ascética Marina Silva estimulou o eleitor a tomar Campos a sério. Diz-se que é por que o candidato ainda não se tornou conhecido. Será?
O que dirá o eleitor quando, conhecendo-o, descobrir que Campos coabitou com sarneys e renans o governo petista? E quando todo mundo ficar sabendo que o candidato da "nova política" governou Pernambuco a bordo de uma megacoligação em que cabia de tudo —de Severinos a Inocêncios?
Não é sem motivo que o sentimento de mudança ainda está à espera de um candidato que o sintetize. Conspira contra a definição do eleitorado a profusão de escândalos: mensalões, cartel Alstom-Siemens, Pasadena, refinaria Abreu e Lima, Alberto Youssef, Paulo Roberto Costa…
Principal beneficiário da erosão de Dilma, Aécio foge de polêmicas com Campos e Marina e busca um candidato a vice que lhe traga mais tempo de propaganda no rádio e na tevê. Mesmo que isso traga algum custo estético à coligação. Tenta-se a todo custo reduzir a vantagem de Dilma, dona de um latifúndio eletrônico de cerca de 13 minutos.
Antigamente, as alianças partidárias eram balaios de gatos. Hoje, são balaios de gatunos. E eles vão ficando mais pardos à medida que a campanha se consolida como apenas mais um ramo da publicidade. Para o eleitor, o risco é o de eleger a melhor encenação, em vez do melhor presidente.
A marquetagem do PT aposta em Lula para estancar o derretimento de Dilma. Para o partido, Lula ainda é a medida de todas as coisas. Caindo-lhe a ficha, o petismo talvez perceba que, desencantada com a mistificação da supergerente, uma parcela expressiva do eleitorado já adota outro sistema de medição.
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