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Josias de Souza

Falta ouvir Deus no caso do juiz Todo-Poderoso

Josias de Souza

08/11/2014 05h15

Condenada a pagar indenização de R$ 5 mil ao juiz João Carlos de Souza Corrêa, a agente do Detran Luciana Silva Tamburini precisa recorrer ao STF. Há no processo um erro celestial. A sentença que manteve a condenação em segunda instância, no Tribunal de Justiça do Rio, anota: "Ao apregoar que o demandado era 'juiz, mas não Deus', a agente de trânsito zombou do cargo por ele ocupado, bem como do que a função representa na sociedade."

Citado nominalmente, Deus tem de ser convidado a depor. Nada mais adequado que Ele fale perante o Supremo. Para esclarecer que não é o juiz João Carlos de Souza Corrêa e para que não fique nenhuma dúvida quanto ao seu envolvimento no caso. Tem uma reputação a zelar. E não pode permitir que um juiz se passe por Deus para alegar que está acima da lei e não deve nada a ninguém, muito menos explicações.

O STF não costuma realizar oitivas. No caso do mensalão, por exemplo, Joaquim Barbosa delegou a tarefa a juízes de primeiro grau. Mas nenhum dos 11 ministos da Suprema Corte haverá de se opor ao depoimento do Todo-Poderoso. Que, obviamente, seria dispensado de prestar juramento. "Neste plenário pode haver pecadores, mas não tenho notícia da existência de ateus entre nós", diria o Ricardo Lewandowiski. "Ninguém duvidará da Sua celestial palavra."

Antes de começar o interrogatório sobre o caso de trânsito, Gilmar Mendes pediria a palavra para esclarecer a grande dúvida nacional: "É verdade que o Lula não sabia das coisas que o Dirceu e sua turma faziam sob suas barbas?" E Deus, conservando o mistério: "Eu existo, mas não sou full time. Estou em toda parte, mas terceirizei a política ao demônio. Sugiro que intimem o Tinhoso."

Lewandowiski pediria aos seus pares que se ativessem à pauta. Sobre a blitz do Rio, Deus reiteraria: "Embora seja onipresente, já não tenho tempo de estar em toda parte. Se tivesse uma brecha na agenda, não dirigiria sem carteira. Se dirigisse, não ousaria sair às ruas num carro sem placa. Se ousasse, não invocaria minha condição de Juiz Supremo do Universo para constranger uma agente de trânsito cumpridora dos seus deveres. Se invocasse, ficaria envergonhado quando a agente retrucasse: 'Você é Deus, mas não está acima da lei'."

Um dos ministros perguntaria ao Depoente: "Tendo tantos afazeres mais relevantes —do conflito entre os palestinos e judeus à conversão da Dilma em ex-Dilma— por que desperdiçou seu precioso tempo depondo como testemunha num reles litígio de trânsito?" Cofiando sua imensa barba nevada, Deus responderia: "Se Eu permitisse a propagação da tese segundo a qual, nesse mundo desgraçado, uma agente de trânsito cumpridora das leis pode ser atropelada pela arrogância de um juiz, Deus não mereceria existir."

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.