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Josias de Souza

Líder chama Renan de ‘vergonha do Congresso’

Josias de Souza

26/11/2014 15h42

As regras costumam ser menos perigosas do que a imaginação. Sob Renan Calheiros, porém, vigora nas sessões do Congresso uma única regra definitiva: não há regras definitivas. Nesta quarta-feira, a anomalia produziu uma cena deprimente. Deu-se na sessão convocada para votar o projeto que legaliza o rombo que o governo abriu em suas contas de 2014.

Aos olhos da oposição, Renan presidia uma sessão ilegal. Faltava-lhe o quórum mínimo exigido pelo regimento. A certa altura, o deputado Mendonça Filho pediu a palavra como líder do DEM. Renan aquiesceu, acomodando Mendonça numa fila:

"Concedo a palavra, como líder, ao deputado Cláudio Cajado, em seguida ao deputado Mendonça Filho, em seguida ao deputado Paudernei Avelino", disse o presidente do Congresso. "Na sequência, o senador Romero Jucá (relator do projeto do remendo fiscal) vai ler um requerimento que se encontra sobre a Mesa. E vamos começar a Ordem do Dia".

Mendonça Filho dirigiu-se à tribuna. Postado defronte do microfone, esperou pela conclusão da fala do colega Cláudio Cajado. Ignorando-o, Renan anunciou: "Com a palavra o deputado Cláudio Puty". Petista do Estado do Pará, Puty alisou os tímpanos Renan, que vinham sendo maltratados pelos oposicionistas havia quase uma hora: "Quero elogiar a sua condução serena da sessão."

Ainda na tribuna, Mendonça abespinhou-se: "Vossa Excelência havia me concedido a palavra", disse ele, dirigindo-se a Renan. "Eu tenho preferência, como líder." Renan subiu o timbre: "Vossa Excelência pode tudo aqui, só não pode ficar aí, da tribuna, gritando."

O líder do DEM dobrou o tom: "Posso! Vossa Excelência está envergonhando o Congresso. Vossa Excelência é uma vergonha para essa Casa. É uma vergonha! É uma vergonha para esse Parlamento! Vossa Excelência venha me tirar daqui, da tribuna! Vossa Excelência está pensando que vai mandar em mim da forma…"

Súbito, Renan cortou o microfone de Mendonça, admoestando-o: "Vossa Excelência não pode ficar aí, gritando. Vossa Excelência pode tudo. A democracia que Vossa Excelência quer e reivindica pode permitir isso. Mas a democracia do Brasil não permite, não. Cale-se aí! Cale-se aí!" Renan devolveu a palavra ao governista Cláudio Puty.

Transtornado, Mendonça marchou em direção à poltrona do presidente do Congresso. Interpelou Renan cara a cara. Dedo e língua em riste, abandonou o 'Vossa Excelência'. Bradou, sem formalismos: "Me respeite! Me respeite! Me respeite! Me respeite! Não vai mandar calar!" Em pé, no plenário, a bancada oposicionista solidarizou-se com Mendonça. Os deputados gritavam: "Não vai calar ninguém! Não vai calar ninguém!"

A atmosfera abrasiva perdurou por arrastados 17 minutos. Pega daqui, capa dali o plenário foi ficando ainda mais vazio do que no início dos trabalhos. E Renan, por mais que desejasse fazer média com Dilma, com quem se reunira na véspera, teve de se render às evidências. O problema do governo não era o barulho da oposição, mas o silêncio do conglomerado oficial.

Foi como se o mutismo dos aliados de Dilma gritasse para o Planalto: tudo bem, nós vamos aprovar a meia-sola que o governo pede para tapar o buraco do Tesouro. Antes, porém, queremos saber que espaço cada um terá na Esplanada dos Ministérios. Mestre na audição dos silêncios do Legislativo, Renan entendeu o recado.

Percebendo-se na condição de general sem infantaria, o presidente do Congresso encerrou, finalmente, a sessão. E convocou a próxima batalha para terça-feira da semana que vem. Com isso, concedeu cinco dias de prazo para que Dilma pacifique a própria tropa. Serão dias de muito silêncio.

Antes que a ficha lhe caísse, Renan ainda franqueou o verbo ao líder de Dilma na Câmara, deputado Henrique Fontana (PT-RS): "Nós estamos enfrentando um problema, presidente, que não tem nada a ver com a condução de Vossa Excelência. O que ocorre? Há uma vontade de maioria, que faz uma escolha de política econômica."

Fontana prosseguiu: A maioria "entende que alterar a Lei de Diretrizes Orçamentárias é positivo para a economia. Eu, por exemplo, estou aqui para votar com essa convicção. A bancada do PMDB, do PSD, do PTB, de diversos partidos… Todos querem votar com esta convicção". Logo se verificaria que a convicção não se traduziu em quórum. Porém…

O líder do Planalto resolveu fazer "uma crítica respeitosa" aos antagonistas do governo. Ralhou: "A oposição, ao perceber que não tem os votos, tenta gritar no plenário. Lá na Comissão de Orçamento, ela fez isso. Foi para a frente da Mesa do presidente, como quase tentou fazer aqui, impedindo o presidente de presidir uma sessão. […] Quem é contra pode obstruir e não votar. Mas não pode impedir a sessão de se realizar."

Fontana esticou a prosa: "Vou usar uma palavra dura. A oposição não pode colocar o dedo em riste, a um metro do presidente da Casa. […] Ou a ordem é como a oposição quer ou ela quer desordem. Aí não funciona na democracia, presidente". Dirigindo-se a Renan, o líder do Planalto adulou:

"Presidente, Vossa Excelência não precisa ouvir isso. Mas eu sinto a motivação de dizer, em nome da amplíssima maioria desse plenário: Vossa Excelência está respeitando o regimento com toda a paciência que a democracia exige no Parlamento. Peço à oposição que não suba de dedo em riste, em volta da cadeira do presidente."

As palavras do líder de Dilma acenderam o pavio do líder do PSDB de Aécio Neves, deputado Antonio Imbassahy (BA). "Quero me dirigir ao líder do governo", disse ele, achegando-se ao microfone. "As oposições não reconhecem no governo autoridade moral para se dirigir a nós dessa maneira. Triste, deputado Fontana, é o mensalão. Triste é ver líderes e ex-presidentes do seu partido presos na Papuda. Triste, líder do governo, é a gente assistir às denúncias do petrolão. Roubo, roubalheira, assalto! Saquearam a Petrobras. É isso, deputado Fontana, que envergonha os brasileiros."

O tucano Imbassahy bicou: "Nós não aceitamos esse tipo de mensagem do líder do governo. Um governo que assaltou o país, que envergonha com a maior história de corrupção da República." Para encerrar, o deputado reportou-se a Renan: "Solicito a Vossa Excelência serenidade e equilíbrio, porque essa sessão, a continuar, será anulada. Anuncio que recorreremos ao STF para pedir a anulação de uma sessão iniciada sem o quórum."

Mais adiante, Mendonça Filho voltou ao microfone: "Quero dizer a Vossa Excelência, senhor presidente Renan, que só o povo de Pernambuco pode me calar, me retirando o mandato. Sou um parlamentar de convivência democrática e respeitosa, inclusive com os adversários. Vivo dentro de um Estado democrático, presidente. Que pressupõe respeito às leis e à Constituição, respeito ao regimento".

Mendonça também se dirigiu ao petista Fontana: "O governo cumpre seu papel. Luta para aprovar o que acredita. Um erro. Afronta a Lei de Responsabilidade Fiscal, avilta todos os compromissos com o equilíbrio as contas públicas no país. Mas o governo, deputado Fontana e presidente Renan, tem que agir dentro das regras do jogo democrático, respeitando o regimento."

O líder do DEM recordou a batalha da noite da véspera: "Ontem, o Congresso viveu uma de suas páginas mais negras. O regimento interno foi atropelado. Votamos matérias sem discussão, sem encaminhamento, sem orientação, votamos 38 vetos numa única cédula de votação. E hoje, a grande surpresa pra mim, presidente Renan, é que se repete a dose. O governo não se satisfez. Ligou novamente a motoniveladora."

Mendonça armou-se de ironia: "Nós temos três regimentos: da Câmara, do Senado e do Congresso. Agora, convivo com o regimento de Vossa Excelência —o regimento de Renan Calheiros, que a cada instante se adapta à situação. Não dá para conviver democraticamente nesse ambiente. Para respeitar a democracia tem que respeitar as regras. Não estou aqui para diminuir Vossa Excelência. Mas ninguém, senador, deputado, homem nenhum, me tira o direito de falar. Falo e falarei sempre. Essa prerrogativa não foi dada por Vossa Excelência. Foi conferida pelo meu povo. O povo pernambucano."

Em resposta, Renan suavizou a voz: "Respondendo ao deputado Mendonça Filho, com toda a humildade, a quem respeito muito, quero lembrar que cheguei pouco depois de iniciada a sessão. […] Deputado Mendonça, eu garanti a palavra a todos. Não estaria aqui, sentado nessa cadeira, para atropelar o regimento do Congresso nem da Câmara nem do Senado."

Renan prosseguiu, pausadamente: "O que nós precisamos compatibilizar, e a circunstância muitas vezes dificulta, são os ânimos, para que cada um cumpra o seu papel. O presidente do Congresso não é líder da bancada do governo nem representante da oposição. Temos que interpretar o regimento. Peço até desculpas pelo excesso. Acho que todos temos que pedir desculpas e levar adiante a sessão. Nesse momento em que peço desculpas pelo excesso, faço um apelo para o bom senso e o equilíbrio."

Sobrevieram mais meia dúzia de manifestações. E Renan, finalmente, deu o braço a torcer. Reconhecendo o crescente esvaziamento do plenário, encerrou o vexame.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.