Áreas política e econômica do governo começaram a falar línguas diferentes
No início de sua interinidade, Michel Temer fixara uma diretriz: sobre economia, quem fala em nome do governo é Henrique Meirelles. Decorridos dois meses, a blindagem do ministro da Fazenda já apresenta trincas. Principal auxiliar político de Temer, o ministro Eliseu Padilha (Casa Civil) ergue barricadas contra a intenção da equipe econômica de promover um contingenciamento —eufemismo para bloqueio de gastos— da ordem de R$ 20 bilhões. Faz isso passando a impressão de que ecoa uma vontade superior. E oferece como alternativa uma proposta do colega José Serra (Itamaraty), um desafeto de Meirelles.
"Essa palavra [contingenciamento] não é conhecida dentro das nossas relações aqui, com Fazenda, Planejamento, Casa Civil", disse Padilha nesta quarta-feira. Ele enfatizou: "Desconhecida!" E disparou uma interrogação na direção dos repórteres: "Já ouviram falar de securitização dos créditos?"
Numa tradução grosseira, a securitização é um mecanismo que permite ao governo oferecer no mercado créditos que não consegue receber à vista. Em troca do pagamento imediato, o governo concede um deságio (pode me chamar de desconto) ao comprador do crédito, que vai à luta para cobrar o valor integral do espeto, embolsando a diferença.
Corre no Senado um projeto de lei que formaliza a securitização. Foi apresentado pelo senador José Serra antes de virar ministro. Estima-se que pode render ao governo algo como R$ 60 bilhões. Ao brandir a proposta diante das câmeras, Padilha insinua que a tesoura de Meirelles é inconveniente e desnecessária. Chega mesmo a estimar que o balcão de créditos pode render mais do que o previsto — R$ 60 bilhões "é pouco", declarou Padilha. "Estamos trabalhando com mais de R$ 1 trilhão [de dívida ativa da União]".
O relator do projeto de Serra é o senador Paulo Bauer (PSDB-SC). Em conversa com o blog, ele disse que os créditos da União de fato somam algo como R$ 1,2 trilhão. Mas a Fazenda estima que, desse total, apenas R$ 120 bilhões poderiam despertar algum interesse de instituições financeiras no balcão da securitização. O resto é mico. Escorando-se nas conversas que manteve com técnicos do próprio governo, Bauer calcula que o deságio ficaria ao redor de 50%. Quer dizer: se a coisa funcionasse, o governo arrastaria para seus cofres R$ 60 bilhões.
O diabo é que a tesoura de Meirelles tem uma pressa que não orna com o ritmo do projeto de Serra. A securitização cavalga um projeto de lei complementar. Aprovado no Senado, vai à Câmara. Se for modificado pelos deputados, retorna ao Senado. Depois, será necessário aprovar nas duas Casas um projeto de lei ordinária, regulamentando a medida. O senador Bauer avalia que, recorrendo-se ao regime de urgência, pode-se abrir o balcão da securitização no final do ano. Será?
O repórter perguntou a Bauer se alguém consultou o mercado para saber se há mesmo instituições financeiras interessadas em comprar créditos do governo. E ele: "Não sei dizer. Quem teria que ter feito essa avaliação é o próprio Serra. Os técnicos do governo com os quais eu falei também não fizeram maiores observações sobre esse assunto. Alguns Estados, como São Paulo, já fizeram esse tipo de operação. Houve interesse. Supõe-se, então, que vai haver interesse."
Nesse contexto, ou Eliseu Padilha sabe de algo que todos ignoram ou está guerreando contra os cortes desejados pela Fazenda armado de uma ficção. Fechado com Serra, Renan Calheiros pautara a votação do projeto da securitização para a primeira quinzena de julho. A Fazenda levou o pé à porta. A equipe de Meirelles sugeriu ao relator que destinasse 100% do dinheiro amealhado com a venda dos créditos ao pagamento de dívidas públicas e à cobertura de débitos previdenciários. Uma forma de impedir que a verba fosse torrada em obras.
De início, Paulo Bauer concordou em estipular um teto de 30% para os investimentos. Hoje, cogita retomar o texto original de Serra. Sustenta que os créditos que serão comercializados referem-se a contribuições e impostos atrasados. E a destinação da verba já está prevista nas leis que criaram os tributos. O debate será retomado na volta dos congressistas do recesso, em agosto.
Padilha não é o único auxiliar de Temer a se opor ao bloqueio orçamentário pretendido pela equipe de Meirelles. Há outros ministros políticos engajados na causa. A diferença é que se queixam longe dos refletores. Receiam que a tesoura da Fazenda comprometa gastos sociais em ano eleitoral e às vésperas do julgamento de Dilma Rousseff no Senado. Nesse enredo, o governo só deveria torcer o nariz dos espectadores a partir de novembro, com as urnas abertas e Dilma transferida para seu apartamento de Porto Alegre.
Como se fosse pouco, Padilha falou aos repórteres sobre juros em dia de reunião do Comitê de Política Monetária do Banco Central, o Compom. Disse que Michel Temer defende a queda da taxa Selic. "Se analisarmos todos os indicadores, vamos ver que, forçosamente, teremos queda nos juros", disse.
Após afirmar que o Planalto não deseja se meter nas atribuições do BC, Padilha foi adiante: A queda dos juros "agrada o presidente. Ele vê com bons olhos se pudermos, com autonomia do Banco Central, corresponder a essa expectativa. Economistas, agências de avaliação estão dizendo. A palavra final é do Banco Central." No início da noite, o Copom anunciou sua decisão: manteve a taxa em 14,25% ao ano, a maior nos últimos dez anos.
A diretoria do Banco Central fez mais. Após a primeira reunião presidida pelo economista Ilan Goldfajn, divulgou-se uma nota três vezes maior que os textos habituais. Nela, o BC foi claro como água de bica ao explicar as razões que levaram o Copom a manter os juros nas alturas. Incluiu entre as motivacões as dúvidas que rondam a gestão das contas públicas. Essas dúvidas são potencializadas pela interinidade do governo e pela incerteza quando à aprovação do projeto que fixa um teto para os gastos públicos.
Horas antes, pelo Twitter e por meio de seus assessores, Temer repetiu que respeita a autonomia do Banco Central. Soou como se desautorizasse Eliseu Padilha. Político experimentado, Temer sabe que, entre suas atribuições, está a de administrar divergências. Intrigas, todo governo tem. Mas obrigar um ministro da Fazenda a se dividir entre a gestão as contas e o acompanhamento das opiniões dos conselheiros do presidente é a melhor receita para o fiasco.
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