Cármen Lúcia cita Gilmar Mendes contra Temer
No despacho em que suspendeu os efeitos do indulto hipertrofiado e generoso concedido por Michel Temer a criminosos condenados (íntegra aqui), Cármen Lúcia invocou uma decisão do colega Gilmar Mendes, amigo e conselheiro do presidente da República. No precedente usado contra Temer, Gilmar suspendera, em 2016, o ato de nomeação de Lula para a função de ministro-chefe da Casa Civil, editado pela então presidente Dilma Rousseff. Considerou que houve "desvio de finalidade". Para Cármen Lúcia, o decreto de indulto natalino de Temer padece da mesma debilidade.
A presidente da Suprema Corte escorou-se em Gilmar Mendes no trecho em que justificou a necessidade de intervir para sanar os defeitos de um decreto cuja edição é uma prerrogativa constitucional do presidente da República. "Como o desvio de finalidade torna nulo o ato administrativo, compete ao Supremo Tribunal Federal, na forma pleiteada pelo Ministério Público Federal, fazer o controle de constitucionalidade do documento normativo, geral e abstrato como o que é objeto da presente ação", escreveu Cármen Lúcia.
A ministra sustentou que o exame de atos do Poder Executico pelo Judiciário "é frequente e necessário para resguardo do sistema jurídico." Foi nesse ponto que Cármen Lúcia injetou no seu texto a decisão do amigo de Temer. Sem citar os nomes de Lula e Dilma, ela escreveu que, "a Presidência da República, competente para a prática de determinado ato [a conversão de Lula em ministro], adotou-o para finalidade diversa daquela prevista em lei."
Na época, Gilmar Mendes suspendera a nomeação por considerar que o verdadeiro propósito de Dilma era o de fraudar as investigações da Lava Jato, retirando Lula do alcance de uma eventual ordem de prisão de Sergio Moro, juiz de primeira instância. Como ministro, o pajé do PT desfrutaria da prerrogativa de foro especial. E os processos abertos contra ele na Lava Jato seriam içados para o jurisdição do Supremo.
Cármen Lúcia abriu aspas para Gilmar Mendes: "Apesar de ser atribuição do Presidente da República a nomeação de ministro de Estado (art. 84, inciso I, da CF), o ato que visa o preenchimento de tal cargo deve passar pelo crivo dos princípios constitucionais…", ela citou.
No longo trecho reproduzido pela presidente do Supremo, Gilmar ensinou a certa altura: "…Nos casos de desvio de finalidade, o que se tem é a adoção de uma regra que aparenta estar em conformidade com uma certa regra que confere poder à autoridade (regra de competências), mas que, ao fim, conduz a resultados absolutamente incompatíveis com o escopo constitucional desse mandamento e, por isso, é tida como ilícita."
Foi precisamente o que sucedeu com Temer, segundo a Procuradoria-Geral da República, ao baixar o decreto que adocicou as regras do indulto, perdoando 80% das penas e 100% das multas impostas a criminosos condenados por crimes não violentos —entre eles a corrupção e a lavagem de dinheiro. Ecoando a procuradora-geral Raquel Dodge, Cármen Lúcia realçou que o decreto de Temer não orna com a finalidade constitucional do indulto. Daí a acusação de "desvio de finalidade".
Na opinião de Raquel Dodge, encampada por Cármen Lúcia, o ato administrativo baixado por Temer, a pretexto de manter a tradição de conceder indulto natalino a presos, esvaziou a jurisdição penal, negou prosseguimento e finalização de ações penais em curso e privilegiou benefícios que diluem o processo penal. "Nega-se, enfim, a natureza humanitária do indulto, convertendo-o em benemerência sem causa e, portanto, sem fundamento jurídico válido", escreveu a presidente do Supremo.
Nas palavras de Cármen Lúcia, "indulto não é nem pode ser instrumento de impunidade". Também "não é prêmio ao criminoso nem tolerância ao crime." Ao flexibilizar regras adotadas em anos anteriores, o decreto de Temer incorporou normas que, na visão da presidente do Supremo, deram "concretude à situação de impunidade, em especial aos denominados 'crimes de colarinho branco'…"
Suprema ironia: Gilmar Mendes, hoje um fervoroso adepto da política de celas abertas, forneceu involuntariamente munição contra o decreto em que seu amigo Temer revelou-se um generoso libertador de corruptos. Como se fosse pouco, a decisão mencionada por Cármen Lúcia foi justamente aquela em que Gilmar manteve Lula ao alcance de Sergio Moro.
Graças ao tratamento draconiano de Gilmar, o juiz da Lava Jato já espetou na biografia de Lula uma pena de nove anos e meio de cadeia. Se a sentença for confirmda pelo TRF-4 em julgamento marcado para 24 de janeiro, Lula se transformará num candidato favorito a engrossar a população carcerária brasileira. Isso, evidentemente, se o Supremo não revogar a regra que permitiu a prisão de condenados na segunda instância. Algo que Gilmar agora defende ardorosamente.
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