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Josias de Souza

Exército diz que destruiu papéis, mas não prova

Josias de Souza

11/05/2018 15h43

O Exército ligou o piloto automático ao reagir à revelação contida em documento secreto da CIA sobre a política de execuções sumárias da ditadura militar brasileira. Divulgado no site do Departamento de Estados dos Estados Unidos, o texto sustenta que o ex-presidente Ernesto Geisel (1974-1979) avalizou a manutenção da prática de eliminar os adversários do regime. "Os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados, foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época", informou o Exército, em nota ecoada pelo Ministério da Defesa.

Repare que o Exército não nega o teor da revelação. Limita-se a sustentar que está impossibilitado de se manifestar sobre o passado, pois o papelório da época virou cinzas. Não é a primeira vez que a tática é empregada. Não será a última. Mas documentos secretos do próprio Exército revelam que a alegação não fica em pé. Falta uma prova da destruição dos documentos.

Normas internas de contra-espionagem do Exército estabelecem regras estritas para a destruição de papéis. Vigoram desde o início da década de 70. Constam de um manual que, atualizado ao longo dos anos, mantém a mesma política quanto aos arquivos secretos.

Obtive cópia desse manual, em sua versão de 1994. Traz na capa a seguinte inscrição: "Instruções Gerais de Contra-Inteligência para o Exército Brasileiro". Dedica um tópico à "segurança na destruição". Estipula que "a destruição de documentos sigilosos deve ser centralizada, de forma a evitar desvios".

Meticuloso, o texto recomenda que "os documentos sejam triturados e depois queimados". Anota ainda que a queima deve ser precedida da "lavratura de um termo de destruição".

Ou seja: se quiser ser levado a sério, o Exército precisa exibir um lote de "termos de destruição". Antes, convém certificar-se da idade dos documentos. Não ficaria bem divulgar papeis que, submetidos às modernas técnicas de perícia e análises tipográficas, desmoronassem.

Divulguei na Folha, em agosto de 2001, papéis secretos cujo teor desafia a retórica oficial do Exército. Os documentos contêm detalhes das operações de combate à guerrilha. Informam, por exemplo, que, ao desembarcar no sul do Pará, a soldadesca sabia o que fazer com os corpos inimigos.

Os cadáveres não poderiam ser desovados a esmo na selva. Depois de identificados, deveriam ser depositados em covas previamente selecionadas. Em resposta a questionamentos que fiz na época, o Exército divulgou uma nota oficial curiosa. O texto sustentava a pantomima da ausência de informações sobre o destino dos corpos da turma do PC do B. Mas admitia a existência de arquivos que, hoje, o mesmo Exército tenta fazer crer que foram destruídos.

Dizia a nota oficial de 7 de agosto de 2001: "Quanto aos desaparecidos nos combates travados naquela região, é importante salientar o que o Exército tem reiterado exaustivamente quando consultado a respeito do assunto: NOS ARQUIVOS EXISTENTES, nada foi encontrado que pudesse indicar a localização de seus corpos".

Já passou da hora de o Estado brasileiro presentear o país com uma abertura ampla, geral e irrestrita dos documentos da repressão. O brasileiro tem direito à sua história. Não é justo impor aos jovens oficiais do Exército de hoje o constrangimento de ter de inventar uma nova destruição de documentos a cada revelação fortuita.

De resto, parece ainda mais injusto condenar a sociedade brasileira à surpresa perpétua de trombar com seu passado de chumbo, exposto em  documentos divulgados a conta-gotas pelo governo dos Estados Unidos. É constrangedor.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.