Exército diz que destruiu papéis, mas não prova
O Exército ligou o piloto automático ao reagir à revelação contida em documento secreto da CIA sobre a política de execuções sumárias da ditadura militar brasileira. Divulgado no site do Departamento de Estados dos Estados Unidos, o texto sustenta que o ex-presidente Ernesto Geisel (1974-1979) avalizou a manutenção da prática de eliminar os adversários do regime. "Os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados, foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época", informou o Exército, em nota ecoada pelo Ministério da Defesa.
Repare que o Exército não nega o teor da revelação. Limita-se a sustentar que está impossibilitado de se manifestar sobre o passado, pois o papelório da época virou cinzas. Não é a primeira vez que a tática é empregada. Não será a última. Mas documentos secretos do próprio Exército revelam que a alegação não fica em pé. Falta uma prova da destruição dos documentos.
Normas internas de contra-espionagem do Exército estabelecem regras estritas para a destruição de papéis. Vigoram desde o início da década de 70. Constam de um manual que, atualizado ao longo dos anos, mantém a mesma política quanto aos arquivos secretos.
Obtive cópia desse manual, em sua versão de 1994. Traz na capa a seguinte inscrição: "Instruções Gerais de Contra-Inteligência para o Exército Brasileiro". Dedica um tópico à "segurança na destruição". Estipula que "a destruição de documentos sigilosos deve ser centralizada, de forma a evitar desvios".
Meticuloso, o texto recomenda que "os documentos sejam triturados e depois queimados". Anota ainda que a queima deve ser precedida da "lavratura de um termo de destruição".
Ou seja: se quiser ser levado a sério, o Exército precisa exibir um lote de "termos de destruição". Antes, convém certificar-se da idade dos documentos. Não ficaria bem divulgar papeis que, submetidos às modernas técnicas de perícia e análises tipográficas, desmoronassem.
Divulguei na Folha, em agosto de 2001, papéis secretos cujo teor desafia a retórica oficial do Exército. Os documentos contêm detalhes das operações de combate à guerrilha. Informam, por exemplo, que, ao desembarcar no sul do Pará, a soldadesca sabia o que fazer com os corpos inimigos.
Os cadáveres não poderiam ser desovados a esmo na selva. Depois de identificados, deveriam ser depositados em covas previamente selecionadas. Em resposta a questionamentos que fiz na época, o Exército divulgou uma nota oficial curiosa. O texto sustentava a pantomima da ausência de informações sobre o destino dos corpos da turma do PC do B. Mas admitia a existência de arquivos que, hoje, o mesmo Exército tenta fazer crer que foram destruídos.
Dizia a nota oficial de 7 de agosto de 2001: "Quanto aos desaparecidos nos combates travados naquela região, é importante salientar o que o Exército tem reiterado exaustivamente quando consultado a respeito do assunto: NOS ARQUIVOS EXISTENTES, nada foi encontrado que pudesse indicar a localização de seus corpos".
Já passou da hora de o Estado brasileiro presentear o país com uma abertura ampla, geral e irrestrita dos documentos da repressão. O brasileiro tem direito à sua história. Não é justo impor aos jovens oficiais do Exército de hoje o constrangimento de ter de inventar uma nova destruição de documentos a cada revelação fortuita.
De resto, parece ainda mais injusto condenar a sociedade brasileira à surpresa perpétua de trombar com seu passado de chumbo, exposto em documentos divulgados a conta-gotas pelo governo dos Estados Unidos. É constrangedor.
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