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Josias de Souza

Ciro assume aos poucos papel de franco-atirador

Josias de Souza

26/07/2018 19h18

Refogado pelo centrão e cozinhado em banho-maria pelo PT, Ciro Gomes vai assumindo na sucessão de 2018 o papel de franco-atirador. Já toma distância até do "grande brasileiro" Lula. Num cenário em que o eleitorado olha para a política e só enxerga alvos, a encarnação do 'contra-tudo-isso-que-está-aí' pode render votos. Mas Ciro precisaria parar de atirar contra o próprio pé.

Ciro fala duas vezes antes de pensar. Produz polêmicas em escala industrial. Não se deu conta de que, na política, o problema começa com as explicações. Na penúltima derrapagem, o candidato do PDT disse, diante das câmeras, que Lula "só tem chance de sair da cadeia se a gente assumir o poder". E manifestou o desejo de "botar juiz e o Ministério Público para voltar pra a caixinha."

Depois da tempestade, Ciro se esforça para traduzir suas palavras do cirês para o português: Quis dizer que "a liberdade do Lula só será restaurada com a restauração do Estado de Direito Democrático, que perdemos na esteira de um golpe. Mas não é a liberdade do Lula, é a regularidade do império da Lei".

Ora, Lula está preso por que foi condenado a 12 anos e 1 mês de cana por corrupção e lavagem de dinheiro. A sentença de Sergio Moro foi confirmada por unanimidade por uma turma do TRF-4, que elevou a pena. Também por unanimidade, uma turma do STJ indeferiu pedido de habeas corpus preventivo do condenado. Por 6 a 5, o plenário do STF abriu o caminho para a expedição do mandado de prisão.

Nesse contexto, Ciro precisaria explicar qual é, afinal, o seu conceito de "regularidade do império da lei". Mas ele prefere culpar a imprensa por suas imcompreensões. "Esses jornalões acham que vão me intrigar porque uma parte do baronato que eles frequentam é hostil ao Lula. E eu sou antagônico ao Lula também. Sou candidato contra o candidato do PT e tenho sido alvo do PT", disse.

O antagonismo de Ciro não o impede de mimetizar o comportamento petista de colocar a culpa na imprensa. O candidato faria um bem extraordinário ao seu projeto político se concentrasse as energias naquilo que interessa ao eleitor. Enquanto Ciro desperdiça o verbo massageando os devotos do PT, o grosso do eleitorado quer saber de empregos e segurança. Se isso vier junto com o apoio à Lava Jato, melhor.

Ironicamente, Ciro sabe o que interessa à plateia. Nesta quinta-feira, num ato partidário em São Paulo, o candidato mencionou os 13,7 milhões de desempregados. "A gente não pode ouvir esse número por um ouvido e deixar sair pelo outro." Citou "os mais de 32 milhões de brasileiros que, empurrados para o bico e a informalidade, correm do rapa" nas ruas do país. "Não é razoável que a política brasileira continue fazendo de conta que isso é natural."

Ciro também falou sobre os "64,5 mil homicídios registrados no Brasil nos últimos 12 meses", dos quais "apenas 8 em cada cem foram investigados." Soou enfático: "Poderia ser nosso filho, nosso pai, nosso irmão, nosso mais querido amigo…"

Com tanta matéria prima, espanta que o candidato perca tempo com Lula. O peso do eventual apoio do presidiário petista não é negligenciável. Segundo o Datafolha, 30% dos eleitores declaram que votariam com certeza em um nome apoiado por Lula. Outros 17% dizem que talvez votariam. Mas uma fatia de 51% do eleitorado declara que em nenhuma hipótese entregaria seu voto ao preferido de Lula. Mais: o pajé do PT já deixou claro que não cogita virar cabo eleitoral de Ciro.

Enquanto não enxerga sua autocombustão, Ciro diz que a imprensa o ataca porque desejasse "sacrificar o carteiro para que o nosso povo não leia a carta". Bobagem. O carteiro, no caso, é a própria imprensa. E ela não tem feito senão reproduzir a mensagem do candidato, com todas as suas intoxicações. De resto, um político que tropeça em polêmicas desde a primeira mamada e continua reclamando da imprensa é como um capitão de navio que se queixa da existência do mar.

Sobre o autor

Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na ''Folha de S.Paulo'' (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro ''A História Real'' (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de ''Os Papéis Secretos do Exército''.

Sobre o blog

A diferença entre a política e a politicagem, a distância entre o governo e o ato de governar, o contraste entre o que eles dizem e o que você precisa saber, o paradoxo entre a promessa de luz e o superfaturamento do túnel. Tudo isso com a sua opinião na caixa de comentários.